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Audálio Dantas é injustamente rebaixado a vilão em 'Casa de Alvenaria'

Verbos escolhidos trazem tom de crítica ao jornalista que nos revelou Carolina Maria de Jesus

Por Dirce Waltrick do Amarante
Atualização:

Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, publicado em livro pela primeira vez em agosto 1960, pela Livraria Francisco Alves, foi sem dúvida alguma um marco na literatura brasileira. 

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Em novembro do mesmo ano, a escritora estava em um ônibus quando algumas pessoas disseram que haviam lido nos jornais que ela tivera “sorte”. Carolina Maria de Jesus respondeu, “eu tenho audácia. Eu tenho dôis anos de grupo. Mas eu sei escrever igual ao doutôr eu procuro competir com o doutôr”.

Um pequeno fragmento dessa conversa serviu de epígrafe ao prefácio de Casa de Alvenaria (volumes 1 e 2), de Carolina Maria de Jesus, publicado pela Companhia das Letras. A epígrafe do prefácio, assinado por Conceição Evaristo e pela filha da escritora, Vera Eunice de Jesus, que coordenam a coleção Cadernos de Carolina, diz o seguinte: “Falavam que eu tenho sorte. Eu disse-lhes que eu tenho audácia”.

A escritora Carolina Maria de Jesus, autora do sucesso 'Quarto de Despejo'. Foto: Arquivo/Estadão

Já na epígrafe, a sorte do jornalista Audálio Dantas, que nos revelou o talento de Carolina Maria de Jesus, é que parece ter sido selada. Ele não foi apagado dos dois livros publicados pela Companhia das Letras. Ao contrário, Dantas parece ter se transformado, como o prefácio faz questão de destacar, no grande vilão dessa história: “A escrita de um segundo diário, nomeado pela escritora como Casa de Alvenaria, se deu por um gesto de comando do jornalista Audálio Dantas” ou “satisfazendo aos desejos do jornalista”.

Conceição Evaristo e Vera de Jesus conhecem o poder da escolha das palavras, de modo que os verbos “comandar” e “satisfazer” não estão ali à toa. Pergunto: se ele não a tivesse “comandado” e se ela não tivesse “satisfeito” a vontade do jornalista, será que hoje o livro existiria?

Diria que a escritora teve sorte, sim, de ter encontrado a pessoa certa na hora certa, o jornalista Audálio Dantas, e foi audaciosa em não temer tornar públicas as suas ideias, permitindo que seus textos chegassem até nós. Aliás, a escritora reconhecia, como disse em novembro de 1961, que teve “sorte com o Audálio Dantas” e, se tivesse que renascer, “queria, é ter a sorte de encontrar outro Audálio Dantas. Porque sem ele, não existia nada disso. Ele é a chave de tudo”.

É claro que, com o tempo, houve um desgaste na relação entre o jornalista e a escritora, o que não é incomum em relações de trabalho. Percebe-se o distanciamento entre eles, e a insatisfação com o amigo em outros fragmentos do diário de Carolina Maria de Jesus. 

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Assim como a escritora sabia da importância de Dantas, ele também estava consciente de que tinha encontrado uma voz que se destacava, e, por isso, dedicou-se à divulgação de sua obra, da qual nunca se colocou como coautor. 

No prefácio de Quarto de Despejo, de 1993, Audálio Dantas conta que seu encontro com a escritora aconteceu quando fazia uma reportagem sobre a favela do Canindé, em São Paulo, mas, ao chegar lá, descobriu que “a história da favela que eu buscava estava escrita em uns vinte cadernos encardidos que Carolina guardava em seu barraco. Li, e logo vi: repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história – a visão de dentro da favela”.

Carolina Maria de Jesus tinha vontade de escrever e tinha muito a dizer; ela é a memória de um país sem memória. E se não se tem memória é porque muitas vezes encobrimos a história do passado com interpretações apressadas. Não somos como os arqueólogos, que vão trazendo à tona ruínas para descobrir o que está por trás da história presente. Corremos o risco de contar a história apenas a partir de hoje, preferindo colocar uma pá de cal no passado, talvez porque trazê-lo à luz implique sabermos lidar com paradoxos que exigem reflexão e resultam em diferentes formas de apreender o mesmo fato. Parece que temos pressa e buscamos uma resposta única para tudo: ou é bom ou é mau, ou é feliz ou infeliz ou... 

Carolina Maria de Jesus em foto de agosto de 1960 Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã

Hoje, sabemos que Dantas “errou” ao não valorizar as outras formas literárias às quais a escritora gostaria de ter-se dedicado. Além disso, ele é acusado de cortar partes de seu diário e reduzir a figura de Carolina a uma só. Como afirmou Vera de Jesus: “O trabalho de Audálio foi importante para conhecermos Carolina, mas ele reduziu sua imagem à de uma mulher que só pensava em forme e pobreza, muito aquém da complexidade que vemos nos cadernos”. Será que agora não reduziram o jornalista ao anti-herói?  Diante de tantas especulações e julgamentos, pergunto-me se Carolina Maria de Jesus gostaria de ver seu diário publicado na íntegra? Será que não editaria algumas passagens? Será que ainda veria Dantas como o descreveu no seu diário, cujas páginas foram escritas no calor dos acontecimentos?

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Lembro da passagem final do filme O Diário de Bridget Jones, para citar uma obra amplamente conhecida: nela, a protagonista se reconcilia com seu grande amor, Mark Darcy. Ela o deixa na sala de seu apartamento, enquanto se arruma. Lá, Darcy abre o diário e nele ele é descrito como uma pessoa horrível, detestável em todos os sentidos. Então, ele sai, mas ela corre atrás dele; quando o encontra, lhe diz esbaforida que tudo que ela escrevera no diário era bobagem, que ela, de fato, não o considera nada daquilo. Não posso contar mais, pois não quero estragar o final do filme.

Voltando a Casa de Alvenaria, difícil é entender por que as coordenadoras da coleção, que são pesquisadoras sérias e experientes, desprezaram o direito ao contraditório e não entraram em contato com a família de Audálio Dantas, morto em 2018, para saber se havia algum documento que contradissesse o que haveria de ser publicado e as acusações seriíssimas feitas a ele.

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