As máscaras

"Fiquei esperando arrefecer; não tenho mais vinte anos, não acredito mais nessas bobagens que a ficção nos dita como objetivo de vida"

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Por Natalia Timerman
Atualização:

Se eu disser que aqui na minha frente, nesta sala de espera, neste consultório de número 1006, um dos tantos conjuntos comerciais deste prédio, deste bairro, desta cidade, se eu disser que aqui está este homem, ninguém acredita.

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Eu o reconheci imediatamente, mesmo sendo só a segunda vez. A primeira foi daquele jeito: você se vê diante de alguém e algo pulsa, algo acontece entre os dois olhares, algo que a presença instaura e faz mudar o próprio olhar, cada um deles, cada um dos polos do que se pode poucas vezes chamar de encontro. Mas nada aconteceu; nada aconteceu, além de eu descobrir que uma máscara, aliás, duas, a minha e a dele, não atrapalham o surgimento da faísca. Porque só vi seus olhos, sua sobrancelha, sua testa, o cabelo, e o conjunto, a postura, o discreto mudar de tônus que alguém de fora provavelmente não perceberia, mas eu sim, eu percebi. Ele também, eu sei. Porque ficamos nos olhando, nos buscando, indo um atrás do outro, sem dizer palavra, sem gesto que nos denunciasse, ou que sequer confirmasse interesses, sem nada que, suponho, alguém pudesse destacar do comportamento comum de pessoas que estão visitando uma exposição. Sem nada que pudesse sobressair da reação de qualquer pessoa diante de uma obra de arte, nem mesmo quando estivemos, ele e eu, diante da mesma foto, diante daquela pessoa interrompida em seu passo de dança, feita então escultura diante da janela, da cidade, um pé em ponta, a ponta dos dedos da mão oposta tocando o chão, a pessoa transformada em objeto e então o objeto, a planta ali do lado, tornada pessoa, tudo isso diante da janela, diante de nós, um ao lado do outro diante da fotografia, nossos gestos como que interrompidos cada um pela presença flagrante do outro, ainda que só nós dois, tenho certeza, só nós dois soubéssemos disso pois ninguém mais poderia notar a temperatura aumentar a partir da gente. 

Passei os próximos dias com algo reverberando de sua presença. Imaginei-o fotógrafo, imaginei seu divórcio, imaginei seu tempo. Imaginei que dançasse bem, que trepasse bem, que fosse alguém atento aos instantes. Imaginei que tenha seguido todos os protocolos de isolamento, mas isso talvez fosse mais dedução, pois ele usava uma NPPF 2. Cheguei a imaginar seu cheiro, como poderia encontrá-lo, voltar à exposição? Procurar no livro de assinaturas, assinatura por assinatura, adivinhar qual seria sua letra, seu nome, passar o resto da vida com ele? Fiquei esperando arrefecer, afinal de contas, não tenho mais vinte anos, não acredito mais nessas bobagens que a ficção nos dita como objetivo de vida, viver grandes histórias, rechear nossa parca vida de dramas que nos fariam escapar da insignificância.

"Nada aconteceu, além de eu descobrir que uma máscara, aliás, duas, a minha e a dele, não atrapalham o surgimento da faísca" Foto: CRIS FAGA

E então, isso agora. Qual a chance? Qual a chance de ele ser consultado na mesma tarde que eu, no mesmo consultório, talvez pelo mesmo médico? 

Mal consigo olhá-lo, e no entanto meu não-olhar o devora, é um vácuo que o suga, que o traz para dentro da minha vida. Minhas mãos suam, não sei o que fazer com as pernas, se as cruzo, não sei como conter meus pés que batem constantemente no chão, meus pés que quase dançam, enquanto eu quase sufoco dentro da máscara, tentando respirar devagar o ar quente, o ar tantas vezes respirado, o ar angustiado que sai e entra em mim.

O nome dele então é Fábio. 

Ele olha para mim ao se levantar, ele me olha por cima da máscara, continua me olhando ao seguir o gesto da moça que o conduz para lá da porta, me olha com suas costas, me olha até quando deixa de estar.

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Em seguida, escuto meu nome, não, eu não posso não estar quando ele sair, mas chegou minha vez, não é o mesmo médico então, Fábio, o nome dele, que ficou ecoando na minha cabeça na voz da secretária durante toda a minha consulta, já não sinto falta de ar, não essa, não a deixada pela covid, está tudo maravilhosamente bem, eu só preciso sair desta sala o quanto antes, antes que o Fábio saia, doutor, só preciso encontrá-lo, falar com ele, dizer venha para minha casa, só preciso ir.

Mas o doutor ausculta minha óbvia taquicardia e não adianta eu explicar, pego o pedido do Holter de cima da mesa e saio para o vazio da sala de espera. Penso em perguntar algo sobre o paciente que entrou antes de mim, mas não tenho coragem. Ainda tenho esperança de encontrá-lo esperando o elevador.

Desço só.

Desço em direção à minha vida, à minha vidinha, espero a porta do elevador se abrir desembocando na minha agenda de fim de ano, vou em direção aos reencontros, enfim, aos planos que voltarei a colocar na minha to do list para o ano que vem, agora que a pandemia quase passou. 

Mas Fábio está ali. Os braços cruzados, diante do prédio, diante de mim, me esperando. Uma vida inteira nova, uma esquina para que eu enfim dobre depois dos quarenta, uma história para contar, deixar escrita. 

Ele tira a máscara.

Fábio. 

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Fábio tem um nariz estranho, uma boca que não fica bem naquele rosto, um sorriso que não é aquele que o meu Fábio tinha, peças que não se encaixam, como um quebra-cabeça montado com as peças erradas, um erro dentro do qual caem os olhos, o corpo, ele inteiro, talvez ele fosse até bonito, talvez, até, se eu o tivesse conhecido sem máscara, talvez todas as suas partes fizessem sentido em suas posições, mas agora, assim, de repente, o nariz, a boca, os dentes, e eu finjo que não o vejo e aceno para o táxi com o sinal luminoso que passa.

* NATALIA TIMERMAN É MÉDICA PSIQUIATRA. TAMBÉM AUTORA DA COLETÂNEA DE CONTOS ‘RACHADURAS’, FINALISTA DO PRÊMIO JABUTI, E DO ROMANCE ‘COPO VAZIO’.

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