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'Ariano Suassuna era um grande sedutor, de ideias firmes e engraçado', diz editora

Editora responsável por devolver a obra de Ariano Suassuna às livrarias, Maria Amélia Mello escreve sobre o autor morto em 2014 e quem tem seu último livro 'Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores - O Jumento Sedutor e O Palhaço Tetrafônico' lançado agora

Por Maria Amélia Mello
Atualização:

No final dos anos 90, conheci Ariano Suassuna. Através de amigos comuns, e não sem insistência, convenci o mestre a se encontrar comigo na José Olympio, a emblemática casa de livros, onde eu trabalhava. Sua obra estava fora de circulação por décadas e, pelo que sabia, ele se recusava a autorizar qualquer edição e não estava nos seus planos firmar novos vínculos.

Amizade com Maria Amélia Mello durou 12 anos Foto: Acervo Maria Amélia Mello

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A JO ficava na Rua da Glória. Na data combinada, a manhã era clara, de azul transparente. Para quebrar a formalidade, preparei uma mesa com pães, queijos, frutas e sucos. Como ele não chegava - seu hotel ficava no mesmo bairro, a poucos metros da editora - resolvi ligar. Do outro lado da linha, ele não se mostrou muito entusiasmado, pediu desculpas, agradeceu e sugeriu marcarmos numa outra ocasião. Como não sou de jogar a toalha, brincando disse: estamos tão perto que se você chegar na janela, vai me ver acenando. Ele riu. Peguei um táxi e fui buscá-lo.

Ao chegarmos à editora, começamos uma conversa leve, que fluía sem tropeços. Ofereci um suco de morango, que ele - com discrição - bebeu por delicadeza. A fruta não estava na lista de suas preferências. Mas, como adivinhar? A verdade é que nada parecia se encaixar, apesar de meus esforços. Mas, é preciso que se registre, com tudo fora do esquadro, nos demos bem. Nascia ali, de maneira curiosamente desajeitada, uma promessa de amizade (que no início de 2002, num hotel do Catete, se confirmaria).

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Naquela rodada inicial, falamos de muita coisa, por alto de livros. Ou melhor, de seus livros. Ele me explicou que não pretendia mais ver sua obra relançada. E se mostrava irredutível. Afetuosamente nos despedimos e, disfarçando a decepção, logo fiquei encantada por ele. 

Ariano era assim, um grande sedutor. Um homem de ideias firmes, de convicções, engraçado, sempre com uma história na ponta da língua. Nem preciso dizer que me divertia muito, que embarcava em suas palavras com misto de prazer e admiração.

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O inesperado chegou: em nosso segundo encontro, numa transversal do Catete, ao lado de Alexandre Nóbrega, seu genro e braço direito então, e de sua agente, Lucia Riff, acertamos a reedição de seus livros. Naquele momento, se estabeleceu entre nós a cumplicidade do afeto e uma parceria profissional. A José Olympio acabara de ser vendida para o Grupo Record e minha tarefa era restaurar o catálogo da Casa. Como ele foi o primeiro a voltar, cunhei, com orgulho, a frase de efeito: estamos apenas na letra A de Ariano. Na realidade, muitos escritores retornaram para o tradicional selo, que abriu suas portas em 1931, pelo famoso editor de brasileiros, José Olympio. De volta, sim, mas não na ordem certinha do alfabeto. A grande Rachel de Queiroz, minha amiga de muitos anos, seria a próxima. O salto na sequência das letras: queimando etapas, chegávamos ao R.

Foi naquela tarde abafada, no bar vazio do hotel, que começou, de verdade, nosso diálogo. Meu aprendizado na convivência com Ariano, na troca, na publicação de seu teatro, nos lançamentos, na edição do monumental A Pedra do Reino. Ficamos amigos. Gostei de dona Zélia, sua mulher e companheira presente, de Maria, sua filha, de Dantas, seu filho, que viria a conhecer pouco tempo depois.

Assisti a inúmeras aulas de Ariano, para diversificadas plateias. Numa Bienal de São Paulo, pude constatar como era amado por seus leitores. Todos queriam falar com ele, pegar seu autógrafo, tirar uma foto. Nada parecia incomodá-lo.

Certa vez, de passagem pelo Rio, combinamos nos ver em seu hotel em Copacabana. Hospedado num apartamento que dava para os fundos, com uma mata, resolvi inventar uma história. Ariano estava sentado de costas para a janela, e eu séria, fixei o olhar na vegetação. Apontando, perguntei o que era aquilo lá longe. E me levantei apressada para verificar. Exclamei perplexa: é uma onça! Onde? Ali, atrás daquela árvore fininha, retruquei. Dona Zélia, que percebeu a brincadeira, só fez rir. Mas, ele, com seu sotaque e voz peculiar, arriscou: E é pintada, minha filha? Ariano era assim, cheio de sonhos, com seus delírios imaginativos e esbanjando criação. O resultado da encenação foi que rimos muito e ele ainda arrematou: Você deu pra mentir também, Maria Amélia?

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Com sua obra em andamento, as reedições chegando às livrarias e despertando a atenção de novos leitores, Ariano revela: estou terminando meu livro (a feitura do original se estendeu por mais de três décadas, virando quase uma lenda). Alguém pode deduzir a euforia de um editor ao receber esta notícia. Planejamos tudo: formato, tipografia desenhada por ele, molduras, ilustrações, capa, papel, a divisão em dois volumes, enfim, todo o processo editorial.

Estive em Recife para a festa de seu aniversário. O assunto não secava e ele se mostrava cada vez mais contente com a obra em andamento. Um dia me liga para a editora e avisa que já tinha o título do novo livro e me pede sigilo absoluto. Em breve, o texto chegaria finalizado. E chegou. Mas, não durou muito a alegria: Ariano me avisou que não valia mais, que eliminasse tudo. Recebi uma segunda remessa, uma terceira. Com a mesma recomendação: jogue fora, esse não vale mais.

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No primeiro semestre de 2014, Alexandre telefonou com a boa nova: o livro está pronto e vou ao Rio levar o texto para acertamos os detalhes da edição. Realmente, ele veio trazendo uma mala a tiracolo com os originais. Compartilhamos muitas informações, definimos os caminhos e fomos almoçar para comemorar. Naquele mesmo dia, voltou para Recife. Mal botou os pés em terra firme, ligou avisando que aquele também não valia mais. Guardei por muitos meses o bloco de texto, em silêncio. Li com o sentimento de que cometia uma indiscrição e não comentei com ninguém. O editor deve guardar segredos e ter paciência faz parte do negócio.

Quando decidi deixar a José Olympio em dezembro de 2014 (hoje sou editora literária da Autêntica), tomei coragem e rasguei tudo. Olhei por alguns minutos o original e cheguei a pensar em guardá-lo, mas resolvi cumprir a determinação de seu dono. Ariano se fora em julho do mesmo ano, e eu deixaria a JO em poucos meses. Fui fiel ao que ele queria: não dei uma palavra sobre o livro, que agora sai do forno para encantamento de seus leitores e muitos, muitos admiradores. Acho que fiz bem, por fim.

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Ao tempo de nossa convivência - 12 anos - fui testemunha de seu empenho no ato criativo, de seu respeito ao ofício, de sua luta em busca da perfeição, da angústia de cortar e escrever de novo. Um vai e vem interminável. Ele estava sempre em ebulição, em transformação, imaginava fundir um livro ao outro, dar continuidade ao projeto de sua vida. Imbatível.

Fico pensando agora que ele merecia ver o livro impresso, nas livrarias. Não foi o que o destino planejou. Mas a caixa saiu como imaginara, contando com o olhar certeiro de Carlos Newton Júnior, num projeto capitaneado por seu filho, o artista plástico, Manuel Dantas Suassuna. 

A mim, restou acompanhar o sonho deste homem alto, magro, um tanto curvado, de voz rouca inconfundível, que usava ternos brancos e meias em tons vermelhos, sapatos de amarrar de cor preta, que contava histórias engraçadas, falante e reflexivo, tinha uma letra miúda e ritmada, liquidificava espontaneamente cultura erudita e popular, autor de carpintaria literária complexa, fundador do movimento armorial, comia pouco, era criador de cabras, torcia pelo Sport de Recife, andava pelos quatro cantos do país com suas aulas, exibia uma memória extraordinária, leitor apaixonado de Cervantes, Euclides, Machado, Dante, Lima Barreto, Dostoiévski e que uma vez, no pátio do Museu Histórico Nacional, me surpreendeu afirmando que era meu pai regra três (perdi meu pai muito cedo, também nordestino), que podia contar com ele para o que desse e viesse. Passou o braço pelos meus ombros e fomos em direção ao carro que nos aguardava. 

Se os originais escaparam de minhas mãos (novamente as tramas do destino), sua amizade ficou permanente na alegria de ver o Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores - O Jumento Sedutor e O Palhaço Tetrafônico com suas 1.012 páginas, em dois volumes, publicados pela Nova Fronteira, com ilustrações do próprio autor, entrelaçando prosa e poesia, desacertando os limites entre ficção e autobiografia. 

Como sonhamos, muitas vezes. Missão cumprida.

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Maria Amélia Mello, jornalista, escritora e editora literária da Autêntica

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