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Alberto Mussa propõe ensaio sobre evolução humana em 'A Origem da Espécie'

'É certo dizer que o fogo é o bem cultural cuja origem é o roubo, isso coloca o fogo como um bem do patrimônio cultural humano'', comenta autor; leia a entrevista completa

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

Desafios do pensamento encantam o escritor Alberto Mussa – ele já se debruçou sobre a cultura africana (em O Trono da Rainha Jinga), árabe (O Enigma de Qaf), indígena brasileiro (Meu Destino É Ser Onça), além de criar um envolvente Compêndio Mítico do Rio de Janeiro, um bem acabado conjunto de cinco volumes com que pretendeu resgatar parte da história do Brasil popular, a partir de segredos e superstições. Em seus estudos, Mussa sempre tangenciou as múltiplas questões do mito até que finalmente decidiu tratar de um assunto que o fascina há três décadas: as distintas versões de um determinado mito, certamente muito antigo, conhecido como o “roubo do fogo”. É o que inspira seu novo livro, A Origem da Espécie, lançado agora pela editora Record.

Alberto Mussa, autor de 'A Origem da Espécie' Foto: Paula Johas/Divulgação

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“Acredito que essa é uma das três ou quatro histórias mais antigas que ainda se contam sobre a face da Terra”, comenta ele, que investigou mais de 300 relatos mitológicos narrados por diferentes povos de todos os continentes. Basicamente, narra a decisiva transformação na vida do homem quando ele, há milênios, passou a controlar o fogo – não apenas como defesa, o novo elemento permitiu que se modificassem os alimentos, cozinhando-os por exemplo. Tal passo gigantesco estabeleceu o próprio conceito de humanidade e revelou indícios da sofisticação do pensamento simbólico que permitiu o aprimoramento da linguagem. Sobre o assunto, Mussa respondeu por e-mail as seguintes questões.

É certo dizer que o fogo é o único bem cultural em que sua origem é o roubo, diferente de outros bens que foram doados por deuses ou demiurgos?

É certo dizer que o fogo é o bem cultural cuja origem, na maioria dos mitos, é o roubo, diversamente dos demais, que (em geral) são doados. Estamos falando de um predomínio estatístico, mas que é muito relevante para a interpretação evolutiva do mito. Porque isso coloca o fogo como um bem excepcional, no conjunto do patrimônio cultural humano. E é essa excepcionalidade que acaba por demonstrar que o mito do roubo do fogo constituiu, no passado longínquo, uma única história, que foi se modificando à medida que a humanidade se dispersou pelo planeta. Assim, podemos dizer que o mito do roubo do fogo é pelo menos tão antigo quanto a própria humanidade anatomicamente moderna. É uma das 3 ou 4 histórias mais antigas que ainda são narradas por populações humanas.

Por que o roubo do fogo coloca o homem acima dos outros animais, reservando-lhe uma posição privilegiada na natureza? Do ponto de vista estritamente evolutivo, científico, parece óbvio que o controle do fogo deu à humanidade um grande poder, sendo inclusive responsável pelo aumento do volume do cérebro e, consequentemente, da inteligência. Mas isso parece para nós. Infelizmente, não sabemos a opinião de outros primatas, como gorilas e chimpanzés, sobre suas respectivas posições na natureza. Não sabemos a opinião de predadores poderosos, como jaguares e leões, sobre serem ou não superiores a nós. Não sabemos sequer se todas as sociedades humanas se concebem como privilegiadas (suspeito, por exemplo, que essa não era a opinião dos nossos ancestrais tupinambás). Posso afirmar apenas que, na alta pré-história, a humanidade começou a narrar um mito, o mito do roubo do fogo, que funcionou como um verdadeiro programa ideológico, para promover ou justificar certos valores e comportamentos fundamentais ao gênero humano: o alimento cozido, a inteligência como capaz de superar a força, a regra do incesto e o parentesco de afinidade, e o poder (digamos) xamânico. A concepção de que a humanidade é superior, que ocupa um lugar à parte na natureza, me parece ser algo bem mais recente, na verdade, algo que surgiu com as chamadas civilizações e com as religiões estatais, particularmente as monoteístas.

Capa do livro 'A Origem da Espécie', de Alberto Mussa Foto: Editora Record/Divulgação

O curioso é que esse roubo tem uma finalidade positiva, pois favorece uma comunidade.

Exatamente. Não só as histórias sobre o roubo do fogo, mas todas as histórias sobre a origem do fogo (com exceções que não atingem 2% do corpus) têm como base a ideologia da dádiva, do compartilhamento. O fogo só foi roubado porque o dono original era egoísta e se recusava a doar. E é isso que faz o ladrão: distribui o fogo. Ao distribuir o fogo, cria a noção de sociedade, fundada na dádiva, na generosidade. Por isso, considero esse mito como um forte programa ideológico, que permitiu, na pré-história, que sobrevivêssemos.

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Qual era o grau de inteligência que o homem precisava ter para, naquele momento, saber de sua necessidade do fogo? A sofisticação da linguagem foi decisiva?

A questão é extremamente complexa. Talvez a humanidade primordial não tivesse noção de que estava dando um decisivo passo evolutivo quando começou a explorar o fogo, a comer alimentos cozidos acidentalmente. Mas creio haver indícios fortes de que o pensamento simbólico e a linguagem (na forma como a conhecemos hoje) são muito anteriores ao domínio pleno do fogo, ou seja, ao momento em que a humanidade passa a produzir fogueiras, não apenas a conservar o fogo colhido na natureza. A complexidade das narrativas míticas, sua capacidade de codificar uma enorme quantidade de significados em tramas aparentemente simples, demonstra que o uso da linguagem já existia e já tinha evoluído muito quando surge a humanidade anatomicamente moderna, há uns 300 mil anos. A linguagem é, provavelmente, anterior ao próprio Homo sapiens.

Dos mitos relatados no livro, qual você considera o mais complexo e, talvez, o mais perfeito?

Avaliar mitos é atividade muito traiçoeira, porque uma aparente simplicidade da trama pode esconder uma série de camadas subtextuais de significados. Mas tenho um mito preferido: o dos caiapós, em que o herói Botoque rouba o fogo da Onça. Além de todas as tensões propriamente narrativas, o momento final é de uma incrível beleza: quando a Onça, do fogo, fica apenas com o reflexo nos olhos.

PARATY RJ 29/07//2017 CADERNO2 / CADERNO DOIS / C2 FLIP FESTA LITERARIA DE PARATY Alberto Mussa Foto: Walter Craveiro/Divulgação

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Como você chegou até a tese de Michel Witzel e quão importante ela foi para você, que sempre teve uma preocupação com os problemas mitológicos?

Sempre vasculho as livrarias, em busca de livros de mitologia, etnologia e pré-história. Foi assim que cheguei ao The Origins of the World’s Mythologies (A Origem das Mitologias do Mundo). É um tratado espetacular, sem dúvida. Mas eu, obcecado pelo mito do roubo do fogo, impliquei com o caráter secundário que Witzel dá a ele. Tenho outras críticas também. Por exemplo, há um certo viés implicitamente racista, quando ele distingue duas grandes tradições mitológicas da humanidade, a da Gondwana e a da Laurásia; e põe a da Laurásia (cuja narrativa mítica seria coerentemente encadeada) em um patamar superior à da Gondwana (que consistiria de contos esparsos). Na prática, o que ele está dizendo é que os povos de pele mais clara (os da Laurásia) são mais evoluídos que os de mais escura (da Gondwana). Quis escrever um livro que provasse que a capacidade narrativa das culturas humanas é idêntica, é igualmente complexa, porque tem a mesma origem.

Qual sua opinião sobre o livro A Guerra do Fogo, dos belgas J. H. Rosny, e do filme inspirado na obra, dirigido por Jean-Jacques Annaud? É possível ter ali, apesar das licenças poéticas, uma noção da importância da posse do fogo?

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Creio que sim. O fogo tem, nessa narrativa, o status de bem fundamental, propulsor da evolução da espécie humana. Essa noção é consensual. Minha crítica ao filme (o livro não cheguei a ler) é a associação entre a noção de evolução, no sentido biológico, e superioridade moral. O homem pré-histórico, por exemplo, é representado como um ser brutal, com uma sexualidade animalesca; sendo que só depois do controle do fogo é que surgem o amor e o afeto. Isso me parece um imenso preconceito. Não há nenhum motivo lógico para que pensemos assim. Pelo contrário, desconfio que isso que chamamos de civilização consiste, de fato, num processo involutivo, porque a ideologia do compartilhamento, entre nós, vem se extinguindo gradativamente. A cada dia que passa, mais nos recusamos a doar. 

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