Agora?

"O futuro era um passo, um sorvete derretido, e o mais valioso dos entendimentos era de fato um presente"

PUBLICIDADE

Por Natalia Borges Polesso
4 min de leitura

Na linha em que o mundo se divide entre o sonho e a matéria, ela fixa os olhos, procurando uma palavra. Diz: horizonte. Mas não é bem isso, pensa. Faz as pazes com o cansaço. Sente a tensão dos ombros se desfazer. Ouve a espuma do mar se desfazer em pés alheios. Desfaz a memória do caminho. Caminhou tanto nos últimos meses. Não foram andanças vagas, tinha muito a fazer. Cuidou de quem necessitava cuidado. Uns se foram, outros muitos ficaram e agora também procuram palavras que deem sentido ao mundo, um rumo. Pensa a esmo o que vem depois disso tudo? As palavras agarram-se ao vento e batem nos ouvidos de um ambulante que está ali naquela praia.

– Tu diz lá longe, no final da água. Quer dizer, no final do que se vê da água?

– Também.

– Vem mais água, depois terra, e gente e segue mundo.

– E segue mundo?

– Aham. E tenho a impressão de que nos olham de volta – seca o suor.

– Eu imagino bem isso. Que alguém me olha de volta com a mesma pergunta, como se fôssemos a mesma pessoa.

Continua após a publicidade

– Tu diz simbolicamente?

– Não, digo exatamente.

– Como um duplo.

– Isso. Um espelho.

– Que estranho e maravilhoso seria, não?

– É.

Demora-se um tanto na contemplação.

Continua após a publicidade

– E o que essa outra pessoa esteve fazendo?

Encara o vazio. Não há mais ninguém por ali, apenas ela, conversando com o eco dissonante do futuro: o que vem depois. Senta-se aliviada por saber que a vida segue, que o depois é uma possibilidade de futuro, uma qualidade do sonho e da matéria e mora naquela linha para onde se olha. Lá existe algo. O futuro só existe para quem tem gana, ímpeto, movida – ouve o vento sussurrar – o futuro – ele ri com desdém – pergunte a uma criança sobre o futuro. Não sobre o que ela será ou sobre elaborações tecnológicas, pergunte o que vem depois.

Agora há uma criança ao seu lado.

– Amor, o que vem depois?

– Depois?

– É, o que vem depois?

– Depois de agora?

Continua após a publicidade

– Isso.

– Sorvete, eu acho.

– Sorvete? – ela sorriu.

– É.

– De que sabor?

"De morango? Não! Chocolate! Não, não, coco. Não, espera. Tem de morango e chocolate com coco, será?" Foto: FOTO TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

A criança sorri de volta anunciando seu desejo.

Continua após a publicidade

– De morango? Não! Chocolate! Não, não, coco. Não, espera. Tem de morango e chocolate com coco, será? 

– Vamos perguntar. 

Pega a criança pela mão. Andam contentes até a barraquinha. É um buffet.

– Olha, tem muitos sabores.

– Oba!

Se serve dos três sabores que tinha mencionado. Ela faz igual.

– Tu também queria bem esses?

Continua após a publicidade

– É, eu acho que sim. Não sabia bem dizer o que queria até tu dizer.

– Então o que vem depois é igual pra mim e pra ti.

A mulher se cala admirada com a sabedoria da criança e busca com a colher se servir dos três sabores juntos. O gosto é bom. É simples. Quase previsível não fosse o coco. Sente uma alegria gelada descer pela goela, sente que a criança tem toda razão. Olha as outras pessoas ali sentadas, considera suas vidas, considera a vida dela própria e vê que, apesar de todas as dificuldades, teve e tem escolhas. Por um momento se surpreende ao ver os rostos das pessoas descobertos. Todos desmascarados e aquilo agora tinha outro sentido. Lembra-se das rotinas hospitalares, os cuidados, tudo que agora estava distante. Agora não está no hospital. O sentimento se dissipa. Volta ao presente.

– O que tu quer ser quando crescer? – a criança pergunta a ela.

– Quando eu crescer?

– É – e lambe uma grande quantidade de sorvete que derretia pela mão.

Ela respira fundo e tenta confirmar que é mesmo uma pessoa adulta com uma vida já feita e com o caminho do querer ser algo há tempos definido.

Continua após a publicidade

– Eu sou enfermeira – pensa um tanto – mas queria ser estilista.

– Estilista? O que é isso? É quem faz listas? Quem vai no supermercado? Não! Quem trabalha empilhando coisas no supermercado!

Ela ri sem muitos pudores. A criança fecha a cara.

– Desculpe. Eu não estava rindo de ti – passa a mão nos cabelos desgrenhados da criança. – Quer dizer, estava rindo, porque tu disse uma coisa muito boa. Foi inteligente e engraçado. Satisfeita empurra o pote, o sorvete quase no fim, restava uma calda mista de uma cor esquisita.

– Ficou ruim agora, sorvete é bom gelado, senão vira outra coisa. Essa meleca.

– Verdade.

– Mas então tu quer ser isso aí e não enfermeira? Por quê? Enfermeiras são legais. Na época da pandemia, eu não lembro, porque eu era mais ou menos bebê, minha mãe dizia que as enfermeiras estavam na linha de frente, tu foi lá?

– Lá onde?

– Na linha de frente, ué.

– Sim, eu fui. 

– E como era?

– Triste e cansativo – ainda pensa muito naquele tempo, tem sempre que fazer um esforço para se destacar da lembrança, a memória é muscular, um cansaço. – Mas às vezes era alegre, quando as pessoas iam embora do hospital curadas.

– Eu vi no YouTube velho. E tiveram as palmas, né? Isso é bem melhor do que ser elitista!

A mulher ri de novo.

– Certamente, é bem melhor. E tu o que quer ser quando crescer?

– Eu não sei. Não pensei nisso ainda. Falta muito tempo para eu crescer. 

Ficaram em silêncio. A mulher não quis contar sobre como o tempo podia ser cruelmente veloz.

– Quer saber o que eu quero ser agora?

A mulher se vira interessada.

– Agora? O que tu quer ser agora?

– É!

A criança lhe oferece uma longa e complexa resposta, que envolve sorvetes, passeios, cães, gatos, passarinhos, grama, bolas e piscinas, computadores, aviões, escola e desejos elaboradíssimos. E depois lhe atinge em cheio:

– E o que tu quer ser agora?

A mulher a encara e pensa que enquanto existirem haverá futuro, que o futuro era um passo, um sorvete derretido, e que o mais valioso dos entendimentos era de fato um presente. Agora. E repetiu a pergunta para si, como se fosse um mantra:

– Agora. O que tu quer ser agora?

* NATALIA BORGES POLESSO É DOUTORA EM TEORIA DA LITERATURA. AUTORA DE ‘A EXTINÇÃO DAS ABELHAS’, ELA JÁ VENCEU TRÊS VEZES O PRÊMIO JABUTI

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.