A paixão segundo Almeida Faria e Jorge Edwards

O português e o chileno falaram de seus livros e da luta contra as ditaduras em seus países

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Por Antonio Gonçalves Filho
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PARATY - O chileno Jorge Edwards e o português Almeida Faria discutiram os “sentidos da paixão” na mesa que encerrou, neste domingo, 3, os debates da Flip. Paixão, aliás, é a palavra que melhor define a literatura e a vida desses dois escritores, que lutaram contra as ditaduras de seus países. Jorge Edwards, filho da alta burguesa chilena, foi diplomata nomeado por Allende para a embaixada de Havana, da qual foi expulso pelo governo cubano após três meses no cargo, por criticar o regime de Fidel Castro. Almeida Faria foi obrigado a servir o exército português durante as guerras coloniais, mas nunca participou de nenhuma manobra contra as ex-colônias. Ao contrário. Combateu ao lado dos revolucionários e comemorou a vitória da revolução, em 1975. Seu livro A Paixão, publicado em 1963, fala justamente de jovens que se engajaram na luta contra a ditadura de Salazar.

Ambos os escritores têm uma história de amizade e admiração por escritores brasileiros. Edwards esteve na embaixada chilena em Paris nos anos 1970, quando o poeta Pablo Neruda era embaixador na capital francesa. Conheceu lá o cronista Rubem Braga, que regava os encontros com uísque importado. Almeida Faria conheceu Raduan Nassar quando o escritor decidiu levar sua obra-prima, Lavoura Arcaica, de presente ao autor de A Paixão, em agradecimento pela inspiração que o autor lhe deu durante o processo de elaboração do livro. 

Almeida Faria e Jorge Edwards em Paraty Foto: Marcos de Paula/Estadão

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A motivação para escrever, segundo Faria, veio da “raiva” contra a ditadura de Salazar. “Era um homem hipócrita, um seminarista envolvido com a governanta de seu palácio”, definiu o escritor português, que fez de seu livro A Paixão uma investigação antropológica do caráter português por meio da história de dois irmãos muito diferentes entre si, trama que encontra correspondência no romance italiano Cronaca Familiare, de Vasco Pratolini. Almeida Faria, aliás, é um excelente leitor dos clássicos italianos, citando, na mesa, um trecho de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, justamente o fragmento em que o poeta sintetiza em dois versos a paixão interdita de Francesca da Rimini por seu cunhado Paulo. Dante narra o desejo dos amantes apenas sugerido pelo tremor de Francesca. Essa estratégia, garante Faria, pode ser uma maneira mais eficaz de falar de sexo que tornar explícito o contato físico, como faz a literatura contemporânea. Seu livro A Paixão segue esse modelo, provocando escândalo não por expor, mas sugerir uma correspondência analógica entre o desejo sexual dos jovens rebeldes e a Paixão da Sexta-feira Santa, como o faz numa passagem em que descreve uma procissão que, repentinamente, fica às escuras (por sabotagem dos garotos esquerdistas, sugere).

Jorge Edwards, analisando as razões do fracasso do governo de Salvador Allende que fez o Chile mergulhar na ditadura de Pinochet, disse que o principal erro do primeiro foi ter negligenciado o poder da inflação sobre o eleitorado. “Chegamos a uma inflação de 500% e Allende dizia que isso servia para destruir a burguesia”. Neruda, ao receber o ministro da Economia de Allende em Paris, simplesmente observou: “Não, ministro, isso vai é nos destruir”. Neruda, diz Edwards, não era economista, mas comunista e, no entanto, sabia mais que o ministro de Allende. Talvez seja um bom exemplo a ser lembrado neste momento.

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