'Zoe surgiu como milagre'

Céline Sciamma admite que se não encontrasse a atriz, uma garota precoce, não teria realizado Tomboy

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Aos 30 anos e com dois filmes no currículo - La Naissance des Pièvres (Lírios d'Água) e Tomboy, que estreia hoje -, Céline Sciamma tornou-se uma das mais interessantes autoras do cinema francês contemporâneo. Ambos os filmes tratam da questão da identidade sexual - o relacionamento de duas garotas lésbicas e uma menina que adota uma persona masculina. Como Céline gosta de dizer que seu cinema, embora não seja autobiográfico, é muito calcado em lembranças e experiências sexuais - e como Tomboy ganhou o Teddy Bear, o Urso de Ouro gay em Berlim, no ano passado -, isso já lhe valeu um rótulo, de cineasta militante. Ela não teme ficar circunscrita ao gueto. Numa entrevista por telefone, de Paris, lembra que Pedro Almodóvar também ganhou o Teddy Bear, mas diz que rotulá-lo como cineasta gay é reducionismo. Se o desenvolvimento futuro de sua carreira lhe proporcionar metade da respeitabilidade de que Almodóvar desfruta, como autor, ela já estará satisfeita.Céline tem mestrado de literatura. Queria ser roteirista. Virou diretora porque é assim que as coisas funcionam na França. "Aqui, os diretores escrevem os próprios roteiros. É muito rara a figura do roteirista profissional. Escrevi, ainda na faculdade, meu primeiro roteiro. Se não o realizasse, ele iria para a gaveta. Não foi uma decisão que tomei. As coisas aconteceram." Tomboy conta a história de Laure, que enfrenta problemas com os pais que estão em processo de litígio. Quando a família se muda para nova vizinhança, ela se transforma em menino, Michael, para se fazer aceita."Não sou Laure nem Michael, mas é evidente que muita coisa no filme faz parte das minhas lembranças de infância. A relação com a irmã, essa sim é inteiramente baseada no relacionamento que tive com minha irmã. Cheguei a reproduzir diálogos, claro que com o filtro da memória." Laure é uma transexual? "Tenho minha ideia sobre ela e poderia dizer o que acredito em que ela se transformará, mas não é importante para o conflito que retrato. Zoe Héran, que faz o papel, é uma menina muito precoce. Conversamos sobre isso porque era necessário que ela entendesse as implicações da personagem. Para ela, trata-se de uma fase. Foi assim que entendeu, e não teve problemas em seguir em frente, naturalmente que assistida por sua família. A mãe permaneceu o tempo todo no set."Se não tivesse encontrado a atriz certa, Céline admite que não teria realizado o filme. "Quando o dinheiro da produção foi liberado, tudo se fez rapidamente. Sob grande pressão procurei o elenco, as locações. Zoe caiu do céu." A menina tem uma cena de nudez - no banho -, absolutamente necessária para a revelação de sua identidade. Céline não teve medo de ser acusada de abuso infantil? "Isso é coisa dos norte-americanos, obcecados com o politicamente correto. Ela esteve o tempo todo protegida, por nós e sua família."A menina cortou o cabelo, adotou atitudes masculinas, mas o que a tornou atraente para a diretora é que já jogava futebol e tinha uma maneira muito natural de se colocar à vontade perante os meninos. Para facilitar a rodagem, os amigos de Laure/Michael são os amigos de Zoe na vida. "Deixei-os à vontade para que fizessem as cenas." Essa parte envolveu muita improvisação, mas as cenas de Laure com a irmã são inteiramente representadas. Havia um diálogo a seguir. "Zoe foi maravilhosa." Céline filmou com uma Cannon 7-D. "É uma câmera barata, muito leve, mas que reproduz a qualidade da imagem de cinema. Sua escolha foi uma decisão estética", informa.

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