PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|William de Cervantes

Atualização:

Um leitor me sugere um imaginário encontro entre William Shakespeare e Miguel de Cervantes. No Céu. Como está fazendo 400 anos que os dois morreram, justo no mesmo dia (23 de abril), é bastante provável que outros tenham tido a mesma ideia. Talvez por não acreditar em vida após a morte, fantasiar encontros póstumos é expediente que pouco me apetece. Chargistas e cronistas adoram tais devaneios (quantos não terão imaginado Michael Jackson e David Bowie saudando a chegada de Prince a uma celestial nuvenzinha, na semana passada?), que ademais quase sempre tangenciam a pieguice.  Decerto existem exceções, mas de memória apenas uma me ocorre: o encontro - ainda no Purgatório - dos três ilustres cavalheiros que morreram em 22 de novembro de 1963, em três diferentes Estados da América do Norte: John Kennedy, Aldous Huxley e C.S. Lewis. Imaginado por Peter Kreeft, resultou num curioso triálogo sobre religião e humanismo de 140 páginas, editado com o título de Between Heaven and Hell pela InterVarsity Press, já lá se vão 34 anos.   Encontros memoráveis foram aqueles que nesta vida, e muitas vezes por acaso, ocorreram (Mahler & Freud, Fats Waller & Al Capone, Chaplin & Cocteau, Isak Dinesen & Marilyn, etc.), devidamente consignados por Nancy Caldwell Sorel e ilustrados por seu marido, Edward Sorel, num belo livro que há tempos a José Olympio traduziu. Também me empolgam os encontros que por um triz não aconteceram. O exemplo que mais lamento envolve as figuras de Albert Camus e George Orwell, duas almas irmãs em vários sentidos. Quase almoçaram juntos na Rive Gauche, em 1945, mas em cima da hora o francês, adoentado, precisou desmarcar o tão aguardado tête-à-tête. Shakespeare e Cervantes nunca sequer se avistaram. Por 18 anos a guerra entre Inglaterra e Espanha os teria mantido ainda mais distantes um do outro. Mas já houve quem suspeitasse que durante o tempo em que andou sumido (1585-1592), o Cisne de Avon tenha dado uma escapulida até as terras inimigas, como espião da coroa britânica, e tomado uns tragos com o espanhol, quiçá em 1588, pouco antes da derrota da grande armada de Felipe II. Disso nem indícios encontraram. Em 2007, a cineasta madrilenha Inés Paris dirigiu uma comédia, Miguel y William, na qual Shakespeare e Cervantes se conheciam em Madri e se apaixonavam pela mesma espanhola. Licença poética do primeiro ao último fotograma. Mais fácil foi alimentar o mito de que Miguel e William morreram na mesma data. Se pelo calendário gregoriano, adotado na Espanha, Cervantes vestiu a armadura de madeira em 23 de abril, Shakespeare precisaria ter morrido 11 dias antes (ou seria depois?) para rumarem juntos aos campos elísios, pois na Inglaterra ainda vigorava o calendário juliano.  Detalhe irrelevante. Relevante mesmo foi a parceria que, com provas, lhes foi atribuída. Parceria é modo de dizer. Shakespeare teria bebido em Cervantes para criar uma de suas peças mais obscuras, supostamente escrita a quatro mãos com seu fiel escudeiro John Fletcher.  Em 1613, fazia um ano que Thomas Shelton, educado e bilíngue espião irlandês, traduzira para o inglês uma parte de D. Quixote, quando The History of Cordenio apareceu pela primeira vez no repertório da companhia teatral de Shakespeare, King’s Men. Como naquele ano o Globe Theatre pegou fogo, é possível que seu texto original tenha sido incinerado. Embora listada, 40 anos mais tarde, entre as obras do dramaturgo a serem publicadas, nunca o foi.  Em 1727, Lewis Theobald, editor e imitador de Shakespeare, publicou uma peça intitulada Double Falsehood or The Distressed Lovers (Dupla mentira ou os amantes angustiados), baseada, segundo o autor, em três manuscritos de The History of Cardenio, misteriosamente não incluída por Theobald nas Obras Completas de Shakespeare por ele editadas.  Cordenio, para quem já o esqueceu: é o jovem corneado andaluz, faminto, maltrapilho e doidinho que o Cavaleiro da Triste Figura e Sancho Pança encontram a morar no buraco de uma corticeira, no capítulo 23 de D. Quixote. Sofre por ter perdido a amada Luscinda para o amigo Fernando, que, por sua vez, perdeu Dorotea, sua verdadeira paixão. Cervantes premia todos eles com um happy end.  Faz sentido que a história de Cordenio tenha sido recriada na Inglaterra, sob a forma de pastiche cervantino ou não. Depois que o rei Jaime I fez as pazes com a corte espanhola, Londres foi invadida pela cultura espanhola. Cervantes virou uma fonte inesgotável de histórias e uma indelével influência sobre as narrativas de Francis Beaumont, Henry Fielding (afamado pelas picarescas aventuras de Tom Jones) e o Laurence Sterne de Tristram Shandy, o mais cervantino de todos. Temas familiares ao teatro shakespeariano - opressão familiar, traições, matrimônios forçados, seduções noturnas, perda de contato - transitam por todos os atos de The History of Cordenio. Gary Taylor, editor da New Oxford Shakespeare e um dos que mais se empenharam em provar que o bardo não foi apenas um solista de gênio, mas também um adepto da criação em dupla, debruçou-se durante 20 anos sobre a peça, examinou-a à luz de múltiplas pesquisas em bancos de dados e sofisticados testes de paternidade autoral, e por fim concluiu: “Embora o texto do século 18 que temos em mãos seja fruto de inúmeras alterações, é consenso entre scholars que a peça foi parcialmente escrita por Shakespeare e Fletcher”.  Certas frases e expressões, como “brutal violência”, por exemplo, soam deslocadas, anacrônicas; não existiam na era elizabetana. Há diálogos numa cena de estupro que sem a menor dúvida foram escritos no século 18. Em 2003, Stephen Greenblatt e Charles Mee escreveram uma nova versão das peripécias de Cordenio usando tropos comuns nas peças de Shakespeare. Ao circular mundo afora, mudanças significativas lhe foram acrescentadas. Na Índia, deram maior ênfase à questão do casamento forçado; no Egito, ao conflito entre citadinos e roceiros fundamentalistas. O primeiro texto “definitivo” a que Taylor deu seu imprimatur só ganhou encenação profissional quatro anos atrás, no palco das Universidades de Indiana e Purdue. “Bem longe de ser um novo Rei Lear, é movimentada, divertida e emocionante”, comentou um crítico. “Lembra Shakespeare, mas apenas lembra”, observou outro. “Prefiro duvidar de sua autenticidade”, opinou um terceiro.  Muito barulho por nada, acrescento eu, absolutamente seguro de não estar distorcendo uma só palavra do mestre.