WEGA POR UMA PINTURA LÍRICA

Expoente da vertente abstrata-informal, artista é lembrada em seu centenário

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Por OLÍVIO TAVARES DE ARAÚJO
Atualização:

Está por ser reescrita (ou, mesmo, escrita) parte da história da pintura abstrata no Brasil. Ao passo que o prestígio da vertente geométrica cresce ininterruptamente e alcança valores extraordinários no mercado, a vertente oposta - a lírica ou informal - paga ainda o preço de um julgamento impreciso feito há mais de meio século. Isso explica que artistas como Wega Nery (1912-2007) e, desde logo, o alemão-brasileiro Henrique Boese (1897-1982), permaneçam, se não esquecidos, numa espécie de limbo de respeitabilidade e poucas consequências práticas. Há décadas não são expostos em museus. Entre 15 e 20 anos atrás, a Galeria Subdistrito, hoje extinta, tentou fazer um revival e revalorização de Wega, postulando-a como uma espécie de precursora do jovem grupo Casa 7, que praticava uma abstração indisciplinada e de muitas tintas, como a dela. Posto que o elo na verdade não existia (é de duvidar que a Casa 7 tivesse sequer visto telas de Wega, até então), o esforço não vingou. Além disso, o mercado de arte obedece muito mais a regras de mercado do que de arte. Faltavam à obra de Wega as armas da sedução comercial.Tende-se hoje a diminuir o papel da vida e da personalidade do artista em sua produção, como se a obra resultasse apenas de um ato deliberado e uma atitude intelectual. Trata-se de um me-engana-que-eu-gosto voluntário, semelhante aos dos que, por desconhecimento, imaginam que a visão marxista da história suprime o indivíduo, propondo-a como o puro resultado determinista de forças sociais em entrechoque. No caso de Wega, sua pessoa e seu temperamento forte estão não apenas na raiz de sua linguagem como até, talvez, um pouco, da diminuição de sua visibilidade. Na década de 1950, quando as Bienais de São Paulo faziam reis, Wega ganhou, na quarta, o prêmio de melhor desenhista nacional, ex-aequo com o brasileiro nascido português Fernando Lemos. O prêmio lhe pavimentou o sucesso nos vinte anos seguintes, quando a abstração lírica tinha prestígio e mercado. Mas Wega não cuidou de criar alianças a longo prazo, de auto-historicizar-se, de fazer média com forças ou pessoas. Permaneceu decididamente na sua, isolando-se na velhice na casa do Guarujá, em seu ânimo reivindicador e um pouco primadonesco. O qual, paradoxalmente, não a tornava nem um pouco antipática e constituía, antes, parte de seu encanto. Historinhas. Surge aqui a gostosa e importante oportunidade para tornar públicas três historinhas em torno de Wega (porque a grande História nasce no dia a dia, e ela faz parte desta). Viúva, desde a década de 1960 vivia com o romancista e crítico Geraldo Ferraz (1905-1979), o autor de Doramundo, secretário nos anos 20 da Revista de Antropofagia de Oswald de Andrade, ex-marido de Pagu, crítico do Estado. Em 1966, Ferraz era membro do júri do Salão de Arte de Brasília, no qual concorriam Wega e Tomie Ohtake, entre tantos. Na hora da votação para o prêmio de pintura, elegantemente - sabia ser elegante -, Geraldo informou: "Como Wega concorre, eu me ausento". Mas apenas se assentou majestosamente, com seu corpanzil e sua cara algo feroz, assim intimidando, é claro, muito mais do que se nada tivesse declarado. Aos poucos, com certo desconforto, foi-se desenhando a vitória de Tomie. Quando ela se confirmou, Geraldo Ferraz saltou da cadeira como um boneco de mola, proclamando em altos brados: "Vocês não entendem nada de pintura. Vocês não entendem nada de pintura". Geraldo reaparece na segunda história, nos anos 1970. Não se costumava, então, chamar certas coisas por seus nomes, e num texto publicado na revista Veja chamei-o de marido (não de companheiro) da artista. Ao meio-dia de uma segunda-feira, logo após a publicação, Wega adentra a redação, furiosa: "Quedê aquele rapazinho? Desde quando Geraldo Ferraz é meu marido?" Felizmente, o rapazinho ainda não havia chegado; quem a controlou foi seu filho, o jornalista Tão Gomes Pinto, que também era da Veja e já estava lá. No terceiro episódio, enfim, reaparece Tomie, com quem Wega (será que desde o prêmio de Brasília?) cultivava alguma rivalidade. Em 2002, publiquei um livro no qual, a certa altura, declarava minha convicção de que a obra de Wega exigia ser revista. Crente de que ela ia gostar, pedi a meu secretário que confirmasse, por telefone, seu endereço, para lhe enviar o volume. No instante mesmo em que ele citou meu nome ouviu sonoramente: "É um f. da p.! Acaba de publicar um livro onde há dois textos sobre Tomie e nenhum a meu respeito". Não havia por circunstâncias editoriais, não por juízo de valor. Vigorosa. Coisas assim ajudam a explicar que a pintura de Wega, no auge, tenha sido extremamente vigorosa, assertiva, feita de manchas e gestos decididos - ainda que espontânea, nada cerebral. Se tiver sentido falar de uma pintura 'feminina', mais doce e suave, como a de Maria Leontina, por exemplo, a de Wega não o era. Por certo também não era masculina, ostensivamente viril, dramática, até algo inquietante, como a de nosso maior abstracionista informal: Iberê Camargo, nos anos 1970. A obra de Iberê constitui o mais cabal desmentido daquele julgamento impreciso que, desde a década de 1950, estigmatizou a abstração lírica: o de ser superficial e decorativa. Formulou-o o pintor Waldemar Cordeiro, chefe de fila, principal teórico e ativista da abstração geométrica, agressivo até por dever de ofício, ao declará-la "hedonista". A briga, no fundo, era entre razão (Cordeiro, geométricos, concretos) e expressividade (os informais). Visto que quando se contempla uma escultura ou um quadro não se leem as teorias mais ou menos complexas ou brilhantes que os embasam, uma bela abstração geométrica não é nem menos nem mais decorativa que uma lírica; não mais nem menos hedonista, portanto. Também a obra de Wega - em especial a do auge - nada tem de hedonista e desmente Cordeiro. Dos anos 80 em diante, como costuma acontecer com a maioria dos artistas ao atingir certa idade, preocupou-se com ser "bonita", requintada, sedutora, sugerindo horizontes, paisagens marinhas e de sonhos. Não se torna a diluição de si mesma (e se o fosse, pelo menos, não seria a de outros), mas certamente diminui os enfrentamentos com a tela e o ato de pintar. Numa autêntica tela abstrata lírica (não nos frequentes amaneiramentos), a forma resulta do embate, do gesto, do impulso da mão, de momentos de arrebatamento não necessariamente conscientes de si; no modelar Iberê, chegavam a ser transes. Na grande Wega, evidenciam-se igualmente a luta e as questões de pintura. Por certo por nos faltar melhor perspectiva de conjunto, sua obra, nos anos 60 e 70, nos parecia menos importante do que hoje. Cresceu com o tempo, tornou-se das mais interessantes da época. Outros pintores ficaram superficiais, decorativos (sim); com ela sucedeu exatamente o oposto. Que as pequenas histórias e a grande continuem ampliando o espaço que merece. TEMPERAMENTO FORTE PODE TER CONTRIBUÍDO PARA POUCA VISIBILIDADE

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