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Volta o bizarro inteligente de Amélie Nothomb

Por Agencia Estado
Atualização:

É mais ou menos como se a Wandinha, a filha mais velha da Família Addams, resolvesse virar escritora. A belga Amélie Nothomb tornou-se a Wandinha da literatura de língua francesa ao publicar, com 23 anos, o romance Higiene do Assassino (lançado no Brasil pela Editora Record) - ela conta que já tinha 11 romances escritos desde os 17 anos, quando começou a escrever. Personagens bizarros, cruéis, com um certo fascínio pela morte e pela putrefação da carne são seus elementos-chave. Ela é espantosamente irrequieta e divertida ao mesmo tempo, de uma inteligência contundente e às vezes exasperante. Hoje, aos 33 anos, Amélie já tem oito romances publicados pela editora francesa Albin Michel e traduzidos para 23 idiomas. É tratada como uma estrela pop por milhares de admiradores, que fundam periodicamente sites na Internet para paparicá-la. Mas ela escreve à mão e não tem Internet em sua casa, em Bruxelas (Bélgica), de onde sai raramente - algumas vezes, confessa, apenas para comprar ou recolher frutas podres nas feiras, um dos seus gostos excêntricos. Amélie lançou recentemente na Europa Métaphysique des Tubes, que é possível comprar na edição francesa na Fnac brasileira, ao preço de R$ 27,74. O romance anterior, Stupeur et Tremblements, vendeu cerca de 400 mil exemplares na França, uma marca fantástica. "Desde o surgimento do jovem Modiano, no fim dos anos 60, nós não víamos semelhante assalto de talento", registrou o Le Point. O novo assalto de Amélie Nothomb retorna mais uma vez a um período nebuloso de sua existência, a infância. Ela costura um relato entre o fantástico e o autobiográfico em sua "metafísica do tubo". O "tubo" é ela mesma, que relata ter vivido até os 10 anos em um estado vegetativo. Era "A Planta", como seus pais a chamavam, ou um pequeno Deus, na visão dos japoneses - ela nasceu em Kobe, no Japão, onde o pai diplomata serviu durante anos. Amélie instrumentaliza aquela condição vegetativa em favor da literatura. "Mozart, Chopin, os discos de Os 101 Dálmatas, os Beatles e o shaku hachi produziram sobre sua sensibilidade uma idêntica ausência de reação", ela escreve, descrevendo seu personagem-Deus. Na verdade, um anti-Deus total, embora uma série de evidências aproximem os dois personagens, na visão de Amélie: o homem-tubo também não tem uma linguagem específica, vive numa serenidade absoluta, não pensa e sua existência é imperceptível. "Viver significa recusar", continua. "O que aceita tudo não vive mais que o buraco de um lavabo." Então, por conseqüência, "Deus" não recusava nada, porque não tinha nenhuma escolha. Portanto, ele não vivia. Não chorou quando nasceu, nenhum som saiu de sua boca. Os médicos diagnosticaram uma "apatia psicológica" na pequena menina-tubo e recomendaram hospitalização. Os pais não o quiseram, porque não achavam possível aceitar a tese de que eram progenitores de um vegetal. As baby-sitters saíam de manhã e quando voltavam, à noite, viam que a criança estava na mesma posição de antes. O mistério do chocolate - A vida de Amélie transcorre assim, com esse ritmo, entre "os mistérios indizíveis do silêncio" até os 3 anos, quando então sua avó lhe oferece uma barra de chocolate branco. A partir daí, tudo se transforma gradativamente, com a descrição sempre original e inquietante da escritora. A vida, até então indiferente, começa a fustigá-la de tal forma que um dia a menina tenta se matar, jogando-se no lago de carpas do jardim de sua casa. Pode-se pensar que Amélie é demasiado cruel consigo mesma, o que não é de todo verdade. "Para mim, a escritura é a continuação da infância por outros meios", ela disse, em entrevista a um jornal espanhol. "Eu sou obcecada pela idéia da morte desde muito pequena, a idéia da morte das pessoas que me são próximas é sempre objeto de pesadelos sem fim", afirmou. "Tenho freqüentemente insônia pensando na morte de minha mãe, na chegada de seu cadáver", acentua a jovem escritora. Em Métaphysique des Tubes, ela narra algo semelhante à morte em vida. Acordada no meio de um pesadelo, seu Kaspar Hauser conta a saga do nascimento de um mundo. Sempre com a morte perpassando tudo, como passagens de bombardeios no Japão. "É uma obsessão que me persegue, um obsessão sobre a amputação, os corpos dilacerados, como qualquer coisa de horrível, mas também extraordinariamente fascinante", diz. Mas, leitora de Diderot, Rilke e de Nietzsche, ela diz que escreve em grande parte contra a morte. "Não sei bem qual tipo de morte eu combato, mas sei que escrevo contra ela - e não é minha própria morte a obsessão, porque eu jamais penso em algo depois de mim." Não imaginem que a literatura de Amélie Nothomb, pelo retrato um tanto quanto excêntrico de sua autora, se preste à simbologia de filmes B de terror. Nada disso. É um material de fina elaboração. O primeiro livro, Higiene do Assassino, era um thriller cujos embates não eram físicos, mas intelectuais. Stupeur et Tremblements, o romance do ano passado, passeava sobre o tema das diferenças culturais. Baseada em sua própria experiência pessoal no Japão, Amélie conta as desventuras de uma ocidental trabalhando em uma empresa japonesa. Uma crítica poderosa contra todo um sistema de produção e de relações humanas. "Não vejo como alguém possa se sentir bem numa empresa japonesa." Uma resenha do Nouvel Observateur a descreve da seguinte maneira: Amélie Nothomb estudou filologia na Universidade Livre de Bruxelas, graduando-se com a tese O Intransitivo e o Intransitivo em Bernanos. Adolescente, viveu entre o Laos, a Birmânia, Bangladesh, China e Japão. Entre seus livros preferidos, ela cita La Chartreuse de Parme, de Xénophon d´Ephse, que leu 64 vezes, e as aventuras de Nestor Burma. Pessoalmente, ela parece estar se divertindo com todo o sucesso imprevisto. Os personagens que cria para si mesma (a ex-anoréxica, a comedora de frutas podres, a leitora contumaz de livros desaparecidos) parecem ser apenas aspectos de uma metaliteratura que ela exerce com "um pouco de saber, um pouco de sabor e muito prazer", como apregoava Roland Barthes.

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