PUBLICIDADE

Volta, gigante

Por Marcelo Rubens Paiva
Atualização:

Num Estado autoritário, o grupo que toma o poder considera seus opositores inimigos. A matemática é simples: utiliza todos os meios de repressão para manter a ordem interna. A polícia passa a agir não a favor do cidadão, mas contra.Durante a ditadura brasileira, a ausência da PM nos campi universitários foi a munição que precisávamos para acabar com ela. Neles, iniciamos os movimentos pela Anistia e Liberdades Democráticas.As primeiras passeatas e manifestações saíram dos campi. A sociedade civil, inclusive a Igreja, rompeu com o regime depois do movimento estudantil reorganizado. Num Estado democrático, deveríamos dar boas-vindas à presença da PM na USP, para combater a epidêmica violência urbana e dar segurança aos alunos.No entanto, herança de tempos atrás, as rondas passaram a dar batidas em estudantes à procura de entorpecentes. E flagrou três deles com maconha. A prisão causou protestos, quebra-quebra e a ocupação de prédios da administração.Não é de hoje que a polícia passa muito tempo revistando a juventude em busca de uma ponta de maconha, para um achaque. A prática existe desde que sou jovem. Nas ruas e estradas. Nos postos policiais rodoviários, em que dão uma geral em nossos carros, enquanto passam carros e cargas roubadas, armas e contrabando. Quem já não foi parado nos postos de Paraty e Penedo e não levou uma geral?No Rio, basta ver uma placa de São Paulo que a PM faz uma revista dura. E se acha algo, extorsão na certa. A sociedade brasileira quer que parte da força policial continue "perdendo tempo" com usuários comuns?Os três estudantes da USP foram levados para a delegacia e liberados horas depois. Alguns defenderam a ação da polícia. Afinal, fumar maconha é crime, e uspianos não deveriam se sentir acima da lei.Errado. A Lei 11.343/06, que entrou em vigor em 2006, revogou a n.° 6.368/76 e instituiu novas normas reguladoras quanto à posse de tóxicos (artigo 28).O crime de porte de substância entorpecente para uso próprio não impõe mais pena de detenção ou reclusão. As sanções previstas são de cunho socioeducativo, como prestação de serviços e admoestação verbal.Se o artigo 28 não prevê pena de detenção ou reclusão, está descriminalizada a conduta do porte de entorpecentes para uso próprio.O jurista Luiz Flávio Gomes escreveu: "Se legalmente, no Brasil, crime é a infração penal punida com reclusão ou detenção, não há dúvida que a posse de droga para consumo pessoal com a nova lei deixou de ser crime, porque as sanções impostas para essa conduta, advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programas educativos, não conduzem a nenhum tipo de prisão. Aliás, justamente por isso, tampouco essa conduta passou a ser contravenção penal, que se caracteriza pela imposição de prisão simples ou multa.""Em outras palavras: a nova lei de tóxicos, no art. 28, descriminalizou a conduta da posse de droga para consumo pessoal. Retirou-lhe a etiqueta de infração penal, porque de modo algum permite a pena de prisão. E sem pena de prisão não se pode admitir a existência de infração penal no nosso país", completou. Sua tese está disponível no site www.jusnavegandi.com.br. Não é melhor avisar a PM? Não prestaria um serviço melhor se estivesse atrás dos verdadeiros criminosos?+++Foi a reitoria da USP que pediu que a Linha Amarela do metrô, ainda na prancheta, não passasse pelo campus, alegando questões de segurança. No projeto original, as estações seriam na Praça do Relógio e no HU (Hospital Universitário). Construíram no Butantã. Os milhares de alunos, professores, funcionários e visitantes que circulam diariamente pela maior universidade da América Latina são obrigados a caminhar mais de um quilômetro até a portaria da instituição.No ano passado, moradores de Higienópolis assinaram um manifesto para que o metrô não construísse uma estação no coração do bairro. "Não queremos uma gente diferenciada", disse uma moradora, o que gerou protestos carregados de ironias.Agora, senhoras de Ipanema abraçaram a tombada Praça Nossa Senhora da Paz e pediram um não à construção de uma estação do metrô. As do Leblon também pedem que a linha siga subterrânea até a Gávea.Síndicos de prédios de Pinheiros pediram que a Prefeitura não leve para o bairro um albergue de moradores de rua. Na semana passada, um banco da Avenida Paulista cercou com grades as muretas da sua agência, que serviam de ponto de encontro, lazer e paquera nos fins de semana. Imitou a agência da Caixa Econômica, também na Paulista, que colocou gradis de proteção para impedir a circulação de pedestres na praça interna.Não se encontra em outros países a divisão de circulação entre proprietários e serviçais. Difícil entender por que há elevadores sociais e de serviço em quase todos os condomínios. E mesmo com o aviso afixado, obrigado por lei, de que é proibida a discriminação, empregados, diaristas, faxineiros são compelidos a não usar o social.Nossa República, proclamada por generais, substituída pela elite do café com leite, recomposta pelo populismo, que a transformou numa ditadura de inspiração fascista, retomada por forças democráticas que viviam em conflito com trabalhistas, que detonou uma ditadura violenta que durou 21 anos, demora para se cristalizar.A violência urbana, prova da fraqueza das instituições públicas, da falência do Estado, da ausência de justiça social, serve de álibi para que se levantem grades, portarias e sistemas de segurança que "protejam" uma classe da outra.A tensão social vitima. A corrupção na Justiça e no Executivo atravancam o desenvolvimento e impedem a distribuição da riqueza pública.A Previdência separa cidadãos em duas castas: os comuns e os servidores públicos. No mês em que se comemora a Proclamação da República, cujo sentido etimológico é "bem comum", deveríamos nos perguntar se ela foi de fato proclamada.O viral da Red Label que emociona, em que as pedras do Pão de Açúcar se transformam num gigante que se levanta e sai andando, sob slogan "o gigante adormeceu", é simbólico. Pois ele se levanta e vai embora. Vai dar um rolê no mar, enquanto nos dizem "keep walking, Brasil". Deveria ficar no continente para ajudar a nossa República. Volte, gigante. Não dê as costas para nós.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.