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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Você conhece o casal?

Há exceções, mas, em geral, existem quatro modelos que mantêm os relacionamentos de pé

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Atualização:

As regras implicam exceções notáveis. Faça uma análise honesta, querida leitora e estimado leitor. Quase todos os casais podem ser enquadrados nos quatro modelos que descreverei. Enfatizo: quase todos... O primeiro modelo foi descrito em um romance de 1938: O Feijão e o Sonho (Orígenes Lessa). O escritor paulista inventou um poeta, Campos Lara, idealista e que deseja fazer poesia tradicional. A esposa, Maria Rosa, é prática e luta com os devaneios do marido. Ela era o feijão, cotidiano; ele, o sonho. Em todo casal, um é dado a voar com sua imaginação idealista. Do outro lado, até pelo saudável equilíbrio, o cônjuge prático sabe que não existe almoço grátis. O feijão, confiável e concreto, tende a ser o mais chato. O sonho puro (insustentável e não pragmático) é mais leve.  O casal do segundo modelo trata de duas concepções de tempo. A primeira, agostiniana: o tempo é uma criatura e, como foi feito pelo Supremo Poder, é um dom. O tempo deve ser usufruído de forma generosa e levando em conta uma confiança em um arquiteto superior que o concebeu. A outra pessoa trata do tempo relógio, o tempo do mercador, como definiu o historiador Le Goff. Um se entrega ao deleite indiscernível do passar dos dias. O outro metrifica, coloca em planilha Excel e compartilha da máxima calvinista do time is money. Onde os dois acabam entrando em rota de conflito? Em geral, nas viagens: um quer executar planos minuciosos; o outro deseja se entregar às novas paisagens. Claro que há casais com combinações de tipos: o feijão tende à planilha, o sonho, à sensação agostiniana, de presente contínuo. 

Fotografia do francês Robert Doisneau que ficou em exposição no Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio de Janeiro, em 2012 Foto: Robert Doisneau/Divulgação

Já fiz crônica sobre a flor e o jardineiro. É o terceiro tipo. Sim, o casal amoroso apresenta cuidados recíprocos, jamais à mesma proporção. Um sempre tenderá ao papel do jardineiro, pensando em regar, adubar e, fato necessário, podar suas rosas. O outro membro da associação conjugal será mais flor. Com o tempo, isso parece até natural na gramática afetiva. A flor tende ao mimo; o jardineiro, ao mau humor orgulhoso por fazer tudo. O jardineiro pode ser feijão e usar o relógio do mercador. A flor é do tempo fluido e viceja no sonho. Nenhum ser humano pode se orgulhar de estar 100% liberto do pensamento mágico. Faz parte da nossa espécie. Passamos mais tempo em cavernas, tomados de terror pelos raios e trovões, do que em laboratórios de física. É um peso cultural instintivo. Porém... pensemos bem: sempre há no casal um feiticeiro e um cientista. O quarto modelo fala daquela dualidade curiosa. Vamos fazer um almoço no jardim? Um consultará a previsão do tempo ou pensará em lugares alternativos e plano B para situação de chuva. O outro? Jogará um ovo no telhado para Santa Clara. Queremos prosperidade no lar? É possível pensar em um bom investimento ou... comer nhoque da sorte, todo dia 29, com uma nota de dólar sob o prato e ingerindo as primeiras porções de pé.  A casa precisa de proteção? Há vários caminhos. O assim chamado cientista procurará seguros residenciais, verificará trancas e alarmes, estimulará a presença de extintores e indicará algum treinamento familiar, em casos de emergência. O feiticeiro plantará um vaso com sete ervas protetoras contra olho-grande, colocará um elefante com o derrière voltado contra a porta, comprará um olho grego e alguma imagem protetora para pôr junto às saídas da residência. Em alguns casos mais elaborados, o feiticeiro fará disposição de espelhos, cristais, fontes de água e outras posições para reorganizar, a seu favor, o fluxo energético da casa. Para garantir coesão textual, vamos lá: o feijão/time is money/jardineiro/cientista andará ao lado do sonho/tempo dom de Deus/rosa/mago. São, claro, tipos ideais. Quem compra cristais e os alinha cuidadosamente na estante da sala está em atitude de jardineiro, mais do que de flor. Crê, sinceramente, que o ato protegerá a casa e busca agir como protagonista. Se a casa tiver o privilégio raro de nunca ser assaltada, quem pode garantir que foram as trancas de ferro, a segurança contratada da rua ou as trancas energéticas do alinhamento dos cristais? Quem pode, de verdade, garantir a eficácia?  O mistério da natureza é o acasalamento entre os tipos descritos. Um mago sofrerá escárnio e atritos com um cientista ao lado. O racional perderá a paciência com o intuitivo mágico. Não obstante, a seta de Cupido aproxima, com frequência, um tipo ao seu polo oposto. Motivo de tal atração bizarra? Podem existir as causas em dois campos. Uma pessoa do casal dirá freudianamente: “Eu me aproximo da minha sombra, do denegado em mim”. Outro, inclinado ao Taoismo, dirá: “São Yin e Yang na conspiração dos fluxos universais!”.  Estaria inscrito nas estrelas ou seria fruto de um impulso psíquico? A esperança está no amor, que, claro, é um processo químico e um destino cármico ao mesmo tempo, como sabem os casais harmoniosamente polares. 

Opinião por Leandro Karnal
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