Vital roteiro da existência

O livro mostra como Artaud acreditava na força artística do teatro para remodelar vidas

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Por Ubiratan Brasil
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O francês Antonin Artaud (1896-1948) foi um artista múltiplo - comediante, encenador, ator e roteirista de cinema, de programas radiofônicos e de música, escritor, poeta, crítico, agitador, ensaísta, artista plástico, cenógrafo, ele transitou, enfim, por quase todos os ramos e sempre propondo a integridade entre a palavra e a coisa, entre o pensamento e o gesto, entre a arte e a existência. Por conta disso, enfrentou, nos últimos anos de vida, dolorosas internações em sanatórios, onde foi tratado à base de eletrochoques. Foi diante de uma figura tão plural e desafiadora que a pesquisadora Florence de Mèredieu, especialista na obra do francês, decidiu escrever o que parece ser um livro definitivo: Eis Antonin Artaud, portentoso volume lançado agora pela editora Perspectiva.Trata-se do mais completo levantamento realizado sobre vida e obra do homem que revolucionou concepções e práticas do teatro. Mais: em sua vasta pesquisa, Florence oferece ainda um retrato da vida cultural europeia entre o final do século 19 e a primeira metade do 20. "Época particularmente complexa e fecunda, atravessando duas guerras mundiais, que vê surgir o que em arte se denominará 'modernidade'. Teatro, música, literatura e artes plásticas conhecerão subversões radicais, enquanto nasce e se desenvolve a arte de massa que constitui o cinematógrafo", escreve ela.Artaud teve papel fundamental nessa transição, especialmente no questionamento da racionalidade da civilização. Chamado de o "grande xamã do Ocidente" pela ensaísta Susan Sontag, Artaud estreou como ator no teatro de vanguarda parisiense em 1921, então com 25 anos. A partir daí - e até sua morte -, ele construiu uma concepção teórica e poética sobre a natureza e a finalidade da expressão cênica. Em 1924, quando já apoiava o movimento surrealista, Artaud escreveu a peça Jato de Sangue, em que utilizou a expressão "excluídos da sociedade" para falar de si mesmo e daqueles que, de alguma forma, acabam marginalizados. Nessa época, ele já desenvolvia a ideia de que o teatro deveria ser o local do encontro e manifestação do inconsciente, do acaso, da imaginação. E, mesmo sem ter conhecimento da teoria brechtiana, que apostava na ruptura do realismo do palco para potencializar a consciência crítica do espectador, Artaud caminhou na mesma direção mas por outras vias.O artista, que morreu aos 52 anos, sentado aos pés de sua cama, segurando um sapato, no hospício de Rodez, na França, confirmou-se, ao longo dos anos, como um profeta. Artaud acreditava em um teatro que pudesse mudar o homem psicologicamente e não socialmente, por meio da liberação das forças tenebrosas e latentes de sua alma. Por conta disso, trabalhou na vertente das inquietações dos teóricos simbolistas e surrealistas, levadas às últimas consequências. Em seus textos teóricos (como, por exemplo, A Evolução do Cenário), Artaud já defendia uma forma teatral que ressaltasse a importância do "espírito e não da letra do texto". Ou seja, uma ação cênica baseada na linguagem do gesto, diminuindo o poder da palavra. Para ele, o teatro deveria "voltar à vida", mas não à maneira dos naturalistas, e sim num nível mais místico e metafísico, aproximando-se das angústias e perturbações reais vividas pelos espectadores. Para isso, o público seria submetido "a uma verdadeira operação envolvendo não apenas a mente, mas também os sentidos e a carne". A essa manifestação, em que o vital se sobrepõe à moral e à razão, Artaud deu o nome de Teatro da Crueldade, que foi sacralizado em um manifesto redigido em 1932.Em seu poderoso livro, Florence de Mèredieu observa que Artaud exerceu o ofício de sua fala nos dois lados de mundos espirituais antagônicos, o da loucura e o da sanidade, uma vez que Artaud passou vários anos internado em hospícios. Sua obra, porém, se tornou o roteiro de uma existência e influenciaria importantes movimentos cênicos pelo mundo, como o teatro do absurdo (de Adamov e Ionesco) e o trabalho marcado pelo absoluto despojamento dos atores de Grotowski. E, no Brasil, especialmente as investigações do Teatro Oficina, sobretudo a partir de Roda Vida (1968). Como um oceano de ideias, Artaud transbordou pelo mundo.

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