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Violência e paixão dão o tom de novo livro de Jennifer Egan

Obra revela prosa elegante e inteligente, que articula enredo engenhoso e grande número de personagens

Por Vinicius Jatobá
Atualização:

Jennifer Egan é uma escritora estranha: seus livros são emaranhados, embrulhados, esbugalhados. Seguindo uma entropia paródica e satírica, quando seus elementos são enumerados jamais remetem à possibilidade de um livro bom, sequer razoável. Sugerem mais uma catástrofe. Como exemplo, o recém-lançado Olhe para Mim. A modelo Charlotte sofre um acidente de carro e tem seu rosto reparado por 80 peças de titânio. O rosto muda; e ela não é mais reconhecida. Há uma estória paralela: outra Charlotte, adolescente da mesma cidade onde ocorreu o acidente de carro, vai se aventurando com homens mais velhos, e descobrindo sua sexualidade. Há um professor universitário, Moose, que pesquisa aquilo que chama de “passado industrial” da cidade onde nasceu, mas sua estória não dialoga com as outras tramas em qualquer grau aparente. Um terrorista libanês está presente na narrativa. Sim, há um detetive privado, que passa seus dias remoendo um divórcio. Um punhado de outros personagens, como um rapaz com doença terminal, habita esse estranho Olhe para Mim sem jamais realmente justificarem suas presenças.

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Publicado em 2001, o livro já tem todas as características que Egan vai extrapolar em A Visita Cruel do Tempo: pluralidade de conceitos e perspectivas e subjetividades, em personagens que estão reunidos em uma narrativa sem propriamente estarem juntos. Em Visita..., Egan consegue articular com imensa fluidez essas disparidades, pois o tema da mortalidade une os pontos; em Olhe para Mim, a narrativa avança mais esquemática. Ainda assim, a legibilidade é garantida pela extrema elegância da prosa de Jennifer Egan. Ela divide com seus contemporâneos a vocação pelo excesso de tudo – materiais, tramas, personagens –, sempre sem esquecer a inescapável pitada qualificatória de alta literatura por meio de paródias e de citações a outros livros; o que a distancia, no entanto, é a forma como destila suavemente os materiais, suprime os vãos entre as tramas, e apresenta com temperança as personagens. Egan é aquilo que se pode chamar de “contadora” de histórias: tem uma admirável compreensão de como se lê, e sabe guiar como poucos essa leitura. Por mais que sejam abruptas as flutuações de seu universo, o leitor jamais se desliga da trilha que Egan traçou para ele. Ela é uma mestra nisso. Uma exceção na soporífera literatura estadunidense contemporânea.

Sendo assim, os descaminhos das duas Charlottes no romance jamais entediam o leitor. Ao contrário: ainda que suas tramas sejam improváveis, o leitor segue acompanhando, página a página, com curiosidade renovada. Charlotte volta a Nova York, e mergulha em uma vida de sexo fácil, bebidas em excesso, algumas patéticas tentativas de retomar sua carreira de modelo. O livro tem ainda espaço para uma tentativa fracassada de suicídio, e que funcione narrativamente apenas atesta o talento de Egan para magnetizar o leitor. Já a outra Charlotte, após encontro com um homem mais velho, fica loucamente apaixonada. Há, no entanto, algo tão violento como o acidente de carro: e a paixão acaba se tornando uma ameaça. Quando o homem desaparece sem deixar vestígios, o leitor respira aliviado. Mas há toda essa atmosfera envenenada, pesada, que cerca a vida das pessoas: e basta um acidente, um encontro, para modificá-la profundamente. Com a aposentadoria de Roth, o imenso cansaço de Morrison e DeLillo, e o sumiço de McCarthy, apenas Jim Harrison mantém o vigor entre os grandes escritores americanos. Sobra a legibilidade de Egan e Franzen. E resta pouco.

Serviço:

OLHE PARA MIMAutora: Jennifer EganTradução: Adalgisa Campos da SilvaEditora: Intrínseca (432 págs., R$ 29,90)

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