Villas-Bôas e os índios numa relação de respeito

Em Arte dos Pajés, livro em que homenageia o irmão Cláudio, morto em 1998, o sertanista Orlando trata do universo espiritual do Xingu. Por Paulo Santoro

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Por Agencia Estado
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Dois anos após a morte do irmão Cláudio, a quem dedica o livro, Orlando Villas-Bôas lançou A Arte dos Pajés - impressões sobre o universo espiritual do índio xinguano. Sua autoridade - merecida após longa experiência em um trabalho que é referência entre os antropólogos - dá importância ao volume, uma consciente descrição da prática mística dos povos ditos "não-civilizados". Villas-Bôas, dotado de sensibilidade humanista, tem um contato direto com o mundo que revela e capacidade para expressá-lo de forma ao mesmo tempo simples e aprofundada, ou seja, sem pedantismo acadêmico mas também sem superficialidade redutora. Como seria difícil de evitar numa obra de divulgação, o autor demonstra a preocupação de evidenciar os equívocos que as pessoas do mundo civilizado têm a respeito dos índios e sua cultura. "O universo do índio não é simples como muitos possam imaginar", ressalta o sertanista. Segundo ele, trata-se de uma cultura complexa que tem recebido pouca atenção dos estudiosos. Essa cultura, admite, tem sido dominada "por uma sociedade mais forte", num processo de aculturação. Mas não é certo dizer que os índios tenham parado no tempo: "Sua evolução se dá em outro ritmo." A "vida natural" da qual os índios costumam ser símbolo gera paixões peculiares entre os brancos. Há quem exalte o modo de vida indígena, crendo-o mais autêntico do caráter animal do ser humano - afinal, os índios respeitam a natureza que provê seu sustento, vivem em harmonia coletiva, relacionam-se socialmente de forma mais ética. Para outros, eles representam uma sociedade arcaica e que não deve ser invejada - seriam coletividades perdidas em superstições, tecnicamente limitadas e sem capacidade política para se relacionarem de igual para igual com outras sociedades. De fato, dificilmente um civilizado se adaptaria totalmente ao modo de vida do índio, desprovido de quase tudo o que se acredita serem os "confortos" dos tempos modernos. Mas a relação dos índios com a natureza e entre eles próprios é carregada de exemplos para os brancos. O chefe indígena é um conselheiro cheio de obrigações - alcança essa posição por mérito natural e inquestionável, passando a ser mais exigido do que antes. Isso é uma lição para o nosso modelo de autoridade, pelo qual nossos "caciques" fazem de tudo para chegar a um poder que será recebido mais como um privilégio do que como uma responsabilidade. O problema político da questão indígena está em como tornar viável a convivência pacífica entre os brancos e esse povo que, como diz Villas-Bôas, "não tem necessariamente de caminhar na mesma direção" que nós. O poder público do País - que demitiu Orlando da Funai por meio de um fax - tem um papel relevante nessa questão. Diversas vezes o governo brasileiro teve atuações positivas, como a do marechal Rondon no início do século, a expedição Roncador-Xingu na década de 40 - liderada desde o início pelos irmãos Villas-Bôas, incluindo Orlando - e a criação do Parque Nacional do Xingu em 1961 (por força dos irmãos Villas-Bôas). Mas a realidade da região é bastante complicada, e o autor é obrigado a contar, aqui e ali, episódios cruéis em que serras, facas e farinha de mandioca com arsênico chegaram a ser instrumentos contra os índios, dos quais lançaram mão seringueiros, garimpeiros, etc. Evitando maniqueísmo, também procura relatar as fortes retaliações dos indígenas diante dessas agressões. Esses temas não poderiam deixar de ser mencionados, mas o assunto central do livro de Orlando Villas-Bôas é a espiritualidade dos povos do Xingu. Segundo o sertanista, a concepção de divindade do índio "é fruto de uma introspecção em que a fé deve nascer da intuição e não da doutrinação de outrem". Dessa forma, seria em princípio mais pessoal e sensível, menos convencional e impositiva. Equilibrado, o autor não faz nenhuma maquiagem, não enaltece as atividades místicas dos índios nem emprega efeitos literários oportunistas. Não evita a palavra "supersticiosos" para caracterizá-los e deixa bem claro, em vários relatos, que os pajés não curam ninguém de graça e que os mais "famosos" são proporcionalmente mais caros. Mas também não deixa de expressar seu espanto diante de acontecimentos fantásticos, como a história de duas crianças que desapareceram durante uma pescaria, colocaram inúmeras aldeias em polvorosa e reapareceram 14 dias depois, na hora indicada pelo pajé Tacumã, após sua intervenção ritualística. Esse equilíbrio e a descrição lúcida tornam o livro fidedigno e permitem que o leitor tenha um contato com esse universo de uma maneira crítica A Arte dos Pajés, de Orlando Villas-Bôas. Editora Globo, 126 págs, R$19,50

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