Vila-Matas volta ao círculo de Bartleby

O escritor catalão diz que seu romance 'Ar de Dylan', que chega às livrarias do País no próximo dia 21, é sobre jovens avessos à ação, e ironiza a sua própria produtividade literária

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Por Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S.Paulo
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O novo livro do espanhol Enrique Vila-Matas, Ar de Dylan, pode sugerir pelo título uma concessão ao universo pop depois de um romance ambicioso como Dublinesca - que o escritor define como “um passeio privado entre o mundo excessivo de Joyce e o lacônico de Beckett”. De fato, Dylan não é Dylan Thomas, mas um sósia do cantor e compositor norte-americano Bob Dylan, que um dia se vê obrigado a substituir o pai num encontro de escritores promovido por uma universidade suíça. O publicitário e cineasta (de um único filme) Vilnius Lancastre foi o único participante que leu um texto autobiográfico nesse congresso, destinado a discutir o fracasso. Determinado a provar a inexistência de um fracassado maior do que ele próprio, Vilnius, que bateu a cabeça e acreditou herdar a memória e a experiência do pai morto, como um Hamlet extemporâneo, quer esvaziar o encontro. Seu objetivo só não se cumpre porque o narrador - um homem educado, mas arrependido por tudo o que escreveu - parece cada vez mais interessado na história da sociedade secreta descoberta por Vilnius, formada por clones do personagem russo Oblomov, personificação do “homem supérfluo” - ou inútil - criado por Goncharov. Em entrevista, por telefone, de Barcelona, Vila-Matas reafirma que seu livro, entre outras coisas, satiriza a produtividade literária. Não que ele considere excessiva a produção contemporânea. “Ironizo minha própria produtividade”, diz o escritor, que, desde o esboço de sua primeira noveleta, de 1973, Mujer en el Espejo Contemplando el Paisaje, já produziu 35 livros. Nem todos foram lidos pelos críticos. Esse primeiro, garante Vila-Matas, só foi lido pelo amigo Héctor Bianciotti, o cultuado escritor franco-argentino. Insistente, quatro anos depois ele escreveu o perigoso La Asesina Ilustrada, no apartamento que Marguerite Duras alugou para ele em Paris. No posterior Paris não Tem Fim, Vila-Matas conta como produziu esse livro “bem-educado”, que, apesar disso, pretende assassinar todos os que o leem. A carreira literária de Vila-Matas começa para valer em 1985 com a publicação de História Abreviada da Literatura Portátil. Na contramão da onda realista que varria o mundo literário espanhol da época, Vila-Matas assinou esse cruzamento híbrido entre ensaio e ficção radical - com liberdade invejável e uma erudição que permitiu a ele estabelecer vínculos entre os criadores mais improváveis. Nesse livro, o autor fala de uma conspiração de shandys, defensores, nos anos 1920, de uma surrealista “literatura portátil”. Eles seriam uma espécie de ponte entre espíritos livres como Marcel Duchamp e Aleister Crowley. Circulando com igual liberdade pelo mundo literário e das artes visuais, Vila-Matas foi convidado pelos organizadores da Documenta de Kassel para falar esta semana de sua experiência multidisciplinar, que lhe permite comentar no novo livro tanto um filme de Sam Peckinpah (Pat Garrett e Billy the Kid) como a poesia de Rimbaud, além, é claro, de dar um novo sentido ao personagem Oblomov, transformando-o no modelo do homem contemporâneo, fechado no próprio mundo e incapaz de um esforço mínimo para interagir com o semelhante. Como Bartleby, personagem de Melville que ele retoma em Bartleby e Companhia, os membros da sociedade secreta de jovens em Ar de Dylan entregam-se ao dolce far niente, dominados, segundo Vila-Matas, pela síndrome do russo Oblomov. Nobre criado por Goncharov, Oblomov é incapaz de tomar uma só decisão importante na vida, preferindo, como Bartleby, dizer não às demandas deste mundo. Vila-Matas é um dos convidados da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que vai de 4 a 8 de julho. Ele fala com entusiasmo do escritor que divide a mesa com ele, no dia 5, o jovem poeta e romancista chileno Alejandro Zambra. “Sua novela Bonsai é um modelo de narrativa curta, ligeira”, define. Coincidentemente, o mais recente livro de Zambra chama-se Formas de Volver a Casa (2011) e Ar de Dylan representa, efetivamente, para Vila-Matas, uma “volta ao lar”, um retorno a Ítaca após a viagem ulissiana de Dublinesca por território irlandês. “Ar de Dylan foi escrito em Barcelona, onde moro há 30 anos, e acredito que é o mais pessoal dos meus livros, pois tudo se passa em ruas e lugares que existem, de fato”, diz Vila-Matas. É também seu livro mais leve, tão leve que deveria ser filmado pelos irmãos Coen, sugere o autor. Vila-Matas anda obcecado com uma das seis propostas para o novo milênio que o escritor Italo Calvino deixou registradas num ciclo de conferências para a Universidade Harvard, nos anos 1980. A “leveza” foi o fragmento que mais o interessou quando leu a obra (Seis Propostas para o Próximo Milênio). Nela, Calvino fala de uma outra maneira de olhar o mundo, sugerindo uma nova lógica e métodos alternativos de conhecimento. O mundo não se revela facilmente, mas sutilmente, segundo Vila-Matas, seja por mensagens do DNA ou bits dos softwares. Vila-Matas diz ter escrito Ar de Dylan “para se divertir”, para esquecer um pouco a gravidade do mundo e contemplá-lo com o descompromisso de um desocupado. “Minha geração foi tremendamente marcada pela literatura pesada de Thomas Bernhard e sinto que precisamos, como disse Calvino, de certa leveza para não morrermos asfixiados por tanto peso.” Há escritores que funcionam como fronteiras para outros autores. Bernhard e Kafka, cita, são dois deles. Ele não gostaria de ser o terceiro da lista. Suas pretensões são menores. Ar de Dylan quer apenas ser a “flagrância do efêmero” que caracteriza esta nossa era, que não é essencialmente trágica como definiu D.H. Lawrence, mas cínica e fugaz. O escritor reage à classificação de nostálgico ao assumir que tentou com o livro escapar à frase “intimidatória” de Rimbaud sobre a obrigação de sermos modernos. Ela deixou inumeráveis vítimas desde então. A inatividade de um Oblomov talvez seja desejável à intensa força dos modernos para produzir uma obra revolucionária a qualquer preço e fazer girar a roda do tempo. Há, segundo Vila-Matas, uma linha “shandy” (referência direta ao Tristram Shandy de Laurence Sterne) que começa com História Abreviada da Literatura, continua com Bartleby e Companhia e chega a Ar de Dylan, que representa o fim de uma trilogia sobre a opção por não criar ou, pelo menos, criar apenas para si, sem se importar com a difusão dessa obra. A ligação e interdependência temática entre esses livros constroem uma obra que tem relação direta com a leveza de que falava Calvino. Mas essa leveza é possível na tradição literária espanhola, marcada pelo peso, pela gravidade? Ele pensa que sim e usa o humor como estratégia, assim como usava o chileno Roberto Bolaño (1953-2003). O sucesso de Bolaño junto à crítica e aos leitores norte-americanos, analisa Vila-Matas, deve-se justamente à fluidez narrativa. “E também, claro, à lenda forjada involuntariamente por sua morte precoce, que o ligou, em definitivo, a escritores como Kerouac”, acrescenta.

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