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"Vidas Calientes" é dramática demais

A peça, com direção de Fernando Peixoto, foi escrita para denunciar a hipocrisia, tratando de sexo entre parentes e homosexualidade na Igreja

Por Agencia Estado
Atualização:

O ator e produtor Luque Daltrozo, gaúcho, de 35 anos, que desenvolveu sua carreira profissional em São Paulo, estreou como dramaturgo em novembro, com a peça Vidas Calientes. A montagem, dirigida por Fernando Peixoto, ficou em cartaz em horário alternativo, até dezembro, no Teatro Augusta. Agora retorna ao mesmo espaço, em temporada de sexta a domingo, até o fim do mês. Com Vidas Calientes, Daltrozo integra um crescente time de artistas, como Newton Moreno (Deus Sabia de Tudo e não Fez Nada), que trata da vida homossexual sem nenhum complexo ou sentimento de culpa. O autor escreveu uma peça para denunciar a hipocrisia. E não optou pela sutileza. Concebeu uma trama que envolve sexo entre parentes e homossexualidade na Igreja. O jovem Filipe, que mora com a mãe, Amélia, durante anos trai a irmã, Sibile, com o cunhado, Augusto, que o seduziu. Filipe decide pôr fim a essa situação. Rompe com Augusto e envolve-se com Gabriel, sem saber que o rapaz, que não fornece telefone, alegando morar com uma família conservadora, é padre. Augusto, enciumado e raivoso, revelará a verdade ao cunhado. Augusto e Gabriel desejam ficar com Filipe, mas sem romper, o primeiro, com a mulher, o segundo, com a fé. Discussão - Caberá ao rapaz tomar a decisão que afetará o destino de todos. O texto de Luque Daltrozo espelha uma perspectiva moderna da homossexualidade, que não abraça preconceitos. A discussão que a peça propõe é procedente e importante. Passa pela questão da imagem, da recusa à caricatura ao folclore, à baixa auto-estima. E afirma o direito à busca da felicidade. Até aí não há o que discutir, ao contrário. Porém, boas intenções nem sempre resultam em bom teatro. E esse é o caso de Vidas Calientes. Talvez pensando no apelo que têm os folhetins, a telenovela, o autor contou sua história usando recursos do dramalhão, gênero que levava às lágrimas platéias do século 19, mas hoje é ineficaz, exceto quando empregado criticamente. Na peça, o caso mais grave de exagero dramático é a cena do confronto entre Filipe, Augusto e Gabriel, cujo início é tão exacerbado, que ganha cores de comédia. O resultado da obra de Daltrozo é desequilibrado. Oscila entre a ângulo moderno da abordagem e a forma antiga da dramaturgia, não encontrando ponto comum entre os extremos. Os personagens foram igualmente traçados de modo irregular. Felipe é a mais bem esboçada das figuras e seu movimento, impelido pela busca de plenitude, conduz a ação. A mãe também sofre uma transformação consistente. Mas os outros participantes do drama foram desenhados de modo monolítico. Sibile é fútil, alienada. Augusto, hipócrita, mau-caráter, não consegue aprender nada com a vida. E Gabriel não tem qualquer generosidade: é um egoísta que se recusa a abrir mão do que quer que seja. A direção do veterano Fernando Peixoto, artista e intelectual de vasta experiência cênica, desta vez não encontrou boas soluções para os problemas do texto. Ele imprimiu fluência e ritmo ao conjunto, mas levou a sério a peça. Por não brincar com o dramalhão, a montagem acabou revestida de um ar realista solene, grave. A quebra dessa linha, que predomina nos embates da família, dá-se em passagens desconcertantes. Caso da cena em que o rapaz e o padre fazem sexo, num strip-tease cuja marcação os leva da sala ao corredor e ao quarto, seqüência em que cortes abruptos de luz ganham a função da edição cinematográfica. O efeito é intrigante, não envolvente, e traz um humor ao que parece involuntário. A cenografia de Marcello Jordan dividiu o palco em dois. No lado esquerdo, sobrecarregado, estão a sala da casa, o corredor e o quarto de Felipe, além do trecho de rua sugerido no proscênio. São os ambientes mais utilizados na ação, e neles se concentra quase todo o movimento. No lado direito, praticamente vazio, está o confessionário da igreja de Gabriel, onde transcorre uma mínima fração da trama. Não seria mais lógico a casa ocupar todo o palco, criando-se a sugestão da igreja do mesmo modo como é apresentada a da rua, com projeção e efeitos de luz? Perfis - No elenco, Imara Reis torna convincente sua personagem, sublinhando o que nela há de convencional, de comum, fazendo o espectador crer na alteração por que passa Amélia. Daniel Gagini, como Filipe, revela-se um ator desenvolto, da mesma forma que Plínio Gouvêa, na pele de Gabriel. Já Patrícia Vilela vivendo Sibile e Renato Scarpin, como Augusto, carregam nas tintas. A atriz não sai do estereótipo, da caricatura mal observada da emergente, a mulher rica e despreocupada. Scarpin, incumbido de criar um tipo antipático e arrogante que enfim sucumbe e mostra um lado humano, mergulha com vontade no kitsch e dá muita ênfase ao aspecto vilanesco de Augusto, criando uma figura pouco crível, cuja rigidez remete a velhos dramalhões. O público que vai ao Teatro Augusta não parece se preocupar com nenhuma das questões apontadas acima e aplaude com gosto ao fim do espetáculo. Sinal de que Daltrozo está em sintonia com o instinto folhetinesco da platéia? Será interessante observar o que o autor fará a seguir. Se a obra de estréia apresenta problemas, traz também evidentes acertos. Serviço - Vidas Calientes. Comédia Dramática. De Luque Daltrozo. Direção Fernando Peixoto. Sexta e sábado, às 21h30; domingo, às 19 horas. R$ 15,00 (sexta); R$ 20,00 (domingo) e R$ 30,00 (sábado). Teatro Augusta. Rua Augusta, 943, tel. 3151-4141. Até domingo.

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