Vida alheia

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Por Redação
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Para aumentar sua margem de lucro, grandes editoras já pensaram em liberar para publicidade a quarta capa e o miolo de seus livros, mas a ideia não prosperou. Imagine topar com um anúncio de bolsa e malas Louis Vuitton ao final de um capítulo de, não, nem precisa ser de O Processo ou A Consciência de Zeno, mesmo num thriller de John Grisham seria um estorvo. Nunca apurei se foi a reação prévia do público leitor que abortou a ideia ou se os anunciantes não viram vantagem em interromper a livre fruição de obras literárias para promover seus produtos. Como alguma coisa precisava ser pensada visando ampliar a lucratividade (ou, melhor dito, abater o prejuízo) na indústria do livro, alguém teve outro estalo: a comercialização de personagens. Ainda que não faltem autores inescrupulosos dispostos a transformar seus personagem em garotos-propaganda, embolsando um porcentual sobre a receita do merchandising da editora, como é de praxe na teledramaturgia, o acertado é que apenas seus nomes seriam negociados, mediante leilão. Quem fizesse a melhor oferta garantiria o direito de batizar a seu bel-prazer um personagem do próximo romance de um autor envolvido no projeto. Na Inglaterra, já fizeram isso sem fins lucrativos. No primeiro leilão, um senhor pagou mil libras para ter o nome da mãe num romance da irlandesa Maeve Binchy. Ian McEwan, Will Self e Ken Follett foram alguns dos autores que participaram dos "leilões de imortalidade" que todos os anos acontecem no Groucho Club de Londres, com a renda integralmente revertida em benefício de uma clínica que atende vítimas de tortura e diversas instituições de caridade. Por que não adotar essa original forma de arrecadação em proveito dos escritores e das editoras? Não é menos embaraçoso perfilhar o nome de um personagem do que constrangê-lo a exibir e consumir produtos com pouca discrição e às vezes nenhuma credibilidade, como ocorre em filmes e telenovelas? Quero crer que, para encher o próprio bolso, boa parte dos escritores sequer aceitaria conversar sobre o assunto. Vã soberba. "What's in a name?", perguntou-se Julieta, que, aliás, já foi Maria (em West Side Story) e outras mais em suas múltiplas reencarnações. Mais complicada do que a barganha onomástica é a apropriação implícita na ficção à clef, aquelas narrativas nas quais o autor trata de pessoas reais por meio de personagens fictícios. Se afetiva ou neutra a recriação, os autores nem se esforçam para disfarçar seus personagens chaveados com outro nome e algumas características diferentes. Coelho Neto manteve as iniciais e os prenomes de quase todos os intelectuais boêmios de A Conquista, o mais notório romance à clef do Rio abolicionista, só abrindo exceção para Aluísio Azevedo, que virou Rui Vaz. Quando movidos por sentimentos negativos (ódio, desprezo, ressentimento, vingança), os autores se empenham mais no disfarce, até para não ficar demasiado expostos a um processo por injúria, difamação ou, quem sabe, apropriação indébita de direitos existenciais. O jornal eviscerado por Lima Barreto em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, oculto pelo nome de O Globo (que nem existia naquela época), era o Correio da Manhã. Para o escritor, valeu pela catarse. Como também valeu para George Sand, que desabafou suas mágoas com Chopin no compositor Karol de Oswald, em Lucrezia Fiorani. E para Louise Colet, que, irritada pelas indiscrições a respeito dela em Madame Bovary, retratou Flaubert como um vulgar mulherengo no romance Lui. Se bem que a primeira grande obra à clef da literatura ocidental tenha sido, creio, a Divina Comédia, com todos os desafetos florentinos de Dante, mais os papas Nicolau 3º e Bonifácio 8º, ardendo nos círculos do inferno, ou seja, uma desforra de ressonância social, as vinganças por motivações amorosas mostraram-se, ao longo da história, mais numerosas e consequentes. Consequentes não só porque algumas foram parar nos tribunais, mas também porque geraram réplicas literárias, sob a forma de romances e memórias. Hemingway tratou mal a ex-mulher Martha Gelhorn em Do Outro Lado do Rio, Entre as Árvores, arriscando-se a uma vindita em alto estilo, pois Gelhorn, além de ótima jornalista, tinha as unhas bem afiadas. Entre Philip Roth e a atriz Claire Bloom, que foram casados de 1990 a 1995, deu-se o inverso: a mulher saiu na frente, e a guerra acabou empatada. Um ano após a separação, Bloom lançou um livro de memórias de título ibseniano (Deixando a Casa de Boneca), no qual pintava o ex-marido como um pavão egocêntrico, incapaz de conviver com a filha do primeiro casamento da atriz. Dois anos depois, o pavão foi à forra no romance Casei Com um Comunista. O comunista em questão era Ira Ringold, personalidade fictícia do meio radiofônico, destruída por duas forças do mal: o macarthismo e Eve Frame, sua esposa manipuladora e, apesar de judia, antissemita. Ira e a filha de Eve não se afinavam; ela e a mãe sobraram. Bloom tinha mais que vestir a carapuça. Além de judia, também foi casada com um financista, e sua filha (com o ator Rod Steiger), pomo da discórdia entre ela e o escritor, também tem dotes musicais, é cantora de ópera. Ano passado a escritora britânica A. S. Byatt lançou um vigoroso ataque aos escritores que, combinando biografia, ficção, jornalismo e invenção, apropriam-se "das vidas e da privacidade alheias", procedimento, de resto, em voga nos últimos tempos, mas nem tocou nos casos extremos de picuinhas e desforras afetivas. Só as ficções em que se misturam fatos e ficção, ainda que de forma benigna como nos romances de Don DeLillo (Lee Oswald em Libra, Sinatra, Hoover e Jackie Gleason em Submundo), já lhe provocam desconforto. "Nem são fatos nem ficções, são facções", apelidou-as, esquecida de que a palavra "factions" existe e significa outra coisa. Mas a discussão é promissora e ainda voltarei a ela.

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