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Victor Hugo escreve sobre Shakespeare

Texto do poeta francês sobre o inglês está entre os livros que o crítico literário Harold Bloom elegeu como um dos melhores do mundo ocidental

Por Agencia Estado
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Em 1864, quando Victor Hugo (1802-1885) escreveu o prefácio à nova tradução (feita pelo filho dele) das obras de Shakespeare, encontrava-se num momento bastante particular de sua existência. Já famoso O Corcunda de Notre Dame já tinha sido escrito desde 1831 e Odes e Poesias Diversas, de 1822 - ano de seu casamento com Adèle Foucher -, já lhe tinham angariado o favor e uma pensão de Luis XVIII), era considerado o pai do romantismo francês (até hoje seu prefácio a Cromwell de 1827, é tido como o grande manifesto do movimento), era membro da Académie Française. Assiduamente recebido à corte de Luis-Felipe e de sua nora, a duquesa de Orléans, de quem era amigo pessoal, com o golpe de Estado de 1851, que resultou no 2.º Império sob Napoleão III, viu-se forçado a exilar-se, primeiro na Bélgica e depois na Inglaterra, até o restabelecimento do regime constitucional, em 1870. Os últimos 15 anos de exílio (dez deles voluntários, pois ele não aceitou a anistia de 1859) passou-os na ilha de Guernsey, em companhia do mar, da família e da fiel Juliette Drouet, uma artista de teatro com a qual havia iniciado uma relação em 1833. É ali que ele escreve a parte considerada a mais original de sua obra: seus versos mais famosos de sátira política Les Châtiments (1853); sua poesia apocalíptica Les Contemplatios (1856); seus poemas épicos e metafísicos La Fin de Satan e Dieu, publicados postumamente; La Légende des Siècles (1859) - pequenas épicas baseadas em lendas e fatos históricos; e o tão renomado Os Miseráveis (1862), que o tornou popular no mundo inteiro. Este William Shakespeare, também escrito na ilha inglesa de Guernsey, tem uma história curiosa. Projetado como prefácio à tradução francesa de François-Victor Hugo da obra shakespeariana, ele logo extravasou seu intuito para tornar-se um verdadeiro ensaio sobre uma série de questões ligadas à criação artística, muitas das quais continuam vivas até hoje. O que impressiona primeiramente o leitor é a dimensão de seu conhecimento da cultura antiga, especialmente a helenística, de que se serve para caracterizar Shakespeare e os gênios que lhe associa: Homero, o sol da epopéia e seus planetas; Virgílio, de quem Hugo verteu algumas obras para o francês; Lucano, Tasso, Ariosto, Milton, Camões, Klopstock e Voltaire. Passa em seguida a Jó, como representante do drama, a Ésquilo e seu Prometeu, que, ao lado do dever, introduz o direito. Vêm depois Isaías e o reproche; Ezequiel, o adivinho selvagem; Lucrécio, o ilimitado e seu complemento apaixonado; Juvenal. Tácito, o historiador; João, o virgem; Paulo e o caminho de Damasco; Dante e a Roma dos papas; Rabelais e a Gália; Cervantes e a zombaria épica. Homero e Shakespeare fecham, segundo ele, as duas primeiras portas da barbárie, a porta antiga e a porta gótica. A terceira grande crise é a Revolução Francesa e a porta que se fecha agora, no século 19, é a da monarquia. Da história, que Victor Hugo conhecia bem, inclusive por ser filho de um general de Napoleão I sempre deslocado em campanhas, passa ao drama, focalizando em profundidade a obra de Ésquilo, a quem denomina de "Shakespeare, o antigo", e a quem dedica o essencial da primeira parte do livro. A segunda parte dele e parte da terceira são dedicadas a Shakespeare: seu gênio, sua obra, sua crítica, mas sempre projetadas sobre o pano de fundo desse passado humanístico ao qual o grande inglês daria continuidade. Essa grandiosa reconstituição do passado é mais do que suficiente para se entender a razão de Harold Bloom ter incluído esse livro entre os integrantes de seu Canône Ocidental, não houvessem também os momentos em que o Victor Hugo ensaísta, historiador e político (não se esqueça que ele foi duas vezes deputado, e senador) é suplantado pelo Victor Hugo poeta e aí o discurso - por vezes profético, por vezes visionário - se torna fascinante e verdadeiramente persuasivo. Aurora F. Bernardini é professora de pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da USP William Shakespeare, de Victor Hugo, tradução de Renata Cordeiro e Paulo Schmidt. Editora Campanário, 330 págs., R$ 28.

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