Viagem pela criação contemporânea

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Por Crítica: João Marcos Coelho
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Violoncelo e arco nas mãos, Rohan de Saram transformou o palco do auditório do Sesc Vila Mariana em um espaço privilegiado: durante pouco mais de uma hora, levou o público a uma maravilhosa viagem pela criação musical contemporânea. Ex-membro do Quarteto Arditti, Rohan está com 71 anos, mas conserva uma impressionante vitalidade. Ele trabalhou com todos os grandes contemporâneos, de Stockhausen a Pousseur, passando por Kodaly, Berio e Shostakovich.Foram antológicas suas interpretações do último movimento, um Allegro molto vivace, da notável Sonata Op. 8 do húngaro Zoltan Kodaly para violoncelo solo e de Punema nº 2 Op. 45, de Ginastera. Ambas centradas no aproveitamento de estruturas melódicas e/ou ritmos/padrões do folclore de seus países para criar música distante de nacionalismos baratos. Ao contrário, Punema, evoca o universo mítico dos incas peruanos e é bastante arisca. Explora as chamadas técnicas expandidas, como pizzicati arpejados como no violão, harmônicos normais e falsos, texturas em ponticello e sul tasto, notas indeterminadas e glissandi, ricochetes - enormes dificuldades técnicas que Rohan superou com facilidade. No concerto do dia 21, ele e a pianista Beatriz Alessio apresentaram e comentaram cada peça. O problema ficou mesmo por conta do piano, desafinado além da conta. Assim, soou mais moderno do que de fato é Durations, duo do americano Morton Feldman, que abriu a apresentação. Os problemas do piano atrapalharam também a ótima execução de Beatriz para Estudo Magno, de Gilberto Mendes. Na mesma linha, a peça de Jack Fortner, Vine a Comata, recebeu ótima interpretação.Quando se iniciou a última peça, Schackleton, Worsley e Crean Deslizando de uma Colina de Neve, do compositor brasileiro Leonardo Martinelli, entendeu-se por que o piano desafinara (em consequência do último ensaio da peça pouco antes do concerto). Beatriz tocou com luvas vermelhas: a parte do piano compõe-se apenas de "clusters", ou seja, cachos de notas indeterminadas obtidas com o pianista literalmente socando determinadas regiões do instrumento, com mãos abertas ou fechadas, incluindo às vezes os antebraços, sempre com o pedal de sustentação acionado. O piano é tratado como puro instrumento de percussão e se contrapõe ao violoncelo, com sons mais definidos. Martinelli evoca o episódio dos três exploradores antárticos literalmente se jogando num precipício de gelo para escapar da morte gelada. Funciona bem, até porque, inteligente, Martinelli mantém o poder de impacto da peça ao não esticar demasiadamente sua duração.

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