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Viagem no sangue

Chegou a conhecer 127 bisnetos - e mais: a carregar nos braços o neto do neto

Por Humberto Werneck
Atualização:

Onde é mesmo que a gente estava, na semana passada, quando a conversa nesta página foi bater no fundo do espaço que lhe estava reservado? Ah, sim, com certeza no interior de um Chevrolet 1939 - ou seria já uma das sucessivas kombis em que meus pais transportavam a sua alentada prole?

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O fato é que, como já foi dito, não havia janeiro sem viagem de férias no apinhado lar de Hugo & Wanda - o que, visto de hoje, me parece um feito impressionante, uma vez que transportar e alojar família daquele porte implicava operações dispendiosas, bancadas exclusivamente pelos cruzeiros que meu pai extraía em seu consultório dentário. E como nas férias não entrava um centavo, era preciso que no resto do ano ele ralasse a mais para bancar os dias de folga. Para complicar, parte de sua clientela ele atendia de graça; e havia aqueles que, mesmo endinheirados, atrasavam o pagamento (não se usava cobrar no ato, e sim mandar conta no final do mês), ou simplesmente se dispensavam de pagar. Inesquecível a indignação da d. Wanda quando via na coluna social, esbaldando-se nas Europas, uns grã-finos que deviam a meu pai.

Viajar de avião, que nem aqueles folgados, nem pensar. A única vez foi em 1951, quando o casal, àquela altura com apenas quatro filhos, embarcou rumo a Vitória, no que seria nossa estreia à beira-mar, num DC-3 veterano da Segunda Guerra adaptado para o transporte de passageiros, em cujo ventre era preciso chupar bala e entupir os ouvidos de algodão, para não sofrer de um enjoo nas alturas. Não havia a bordo saquinho que bastasse. 

O mesmo se dava, e sem saquinho, nas viagens por terra, nas quais nosso carro cabritava por estradas lastimáveis, exigindo frequentes paradas para desembarque de conteúdo estomacal. 

Espremidos no banco de trás, éramos instruídos a viajar olhando pelas janelas, para que, ocupados com a paisagem, fossem menores as chances de enjoar. Para os menores, não funcionava, em especial nos tempos do Chevrolet 39, pois, sendo muito rebaixado o banco, o que dali se podia ver lá fora eram nuvens ou copas de árvore. Não espanta que eclodissem brigas ao menor pretexto, ou mesmo sem pretexto algum, e para evitar conflagração maior nossos pais sacavam derivativos. Uma lata de salgadinhos ou de biscoito papa-ovo passada para o banco de trás, ainda que ao risco de fornecer matéria-prima para desembarques gástricos. Ou o joguinho de contar cavalos em cada lado da estrada. Se não funcionasse, mamãe puxava uma cantoria, da qual ficou grudado em mim um hit dos anos 1950: “Encosta tua cabecinha no meu ombro e chora/ e conta logo a tua mágoa toda para mim./ Quem chora no meu ombro eu juro que não vai embora,/ que não vai embora,/ que não vai embora...”. Ficou também a monotonia daquela parlenda na qual “um elefante amola muita gente”, cujo desafio era ajustar a incidência crescente da palavra “amola” à multiplicação dos referidos proboscídeos da família dos elefantídeos. E assim íamos nós, cruzando tempo e espaço.

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* As viagens mais frequentes nos levavam, de carro, a Sete Lagoas, terra da mamãe, para visitar as duas bisavós - a vovó Chiquinha (Avelar) e a vó Fina (Azeredo Coutinho). A d. Wanda, além de delicada, era muito política - talvez mais que o irmão deputado e o avô que teve assento na primeira Constituinte da República -, e cuidava para que, chegando à cidade, fôssemos primeiro à casa que na ocasião anterior tinha sido visitada por último, de modo a não atiçar suscetibilidades do sangue, sabidamente as piores. 

Menino, me parecia esquisito que a vó Fina nos recebesse, sorridente, com uma saudação que me soava a despedida: “Adeus, meus netinhos!”. Morreu aos 92 anos, dos quais 70 dedicados à escola que fundou e manteve no quintal de sua casa, e que, nos meus dias, era tocada exclusivamente pela tia Conceição, a filha que enviuvou cedo e nunca mais se casou. Vó Fina, sem um pingo de arrogância, era desempenada, e sua postura ereta à mesa, inalcançável modelo a reproduzir. 

Daquelas visitas a Sete Lagoas há uma foto da ninhada ainda incompleta de Hugo & Wanda, pousada num meio-fio em frente à casa da vó Fina. Final de 1952, com certeza, pois na ponta direita se encaixou o Marcos, nascido em junho daquele ano, e em cuja esteira estavam por vir ainda três irmãs e dois irmãos. De vestido branco, sorri a Ângela, a mais velha das meninas, então a meses de morrer envenenada acidentalmente com pólvora de fogos de artifício. 

Bem mais movimentada era a casa da vovó Chiquinha. Da sua cadeira de balanço, ela regia a rotina doméstica, da qual se incumbiam quatro filhas solteiras (Titil, Nicota, Helena e Lúcia) e uma viúva (Matilde), todas maduras. “As meninas”, dizia ela. Era mandona, aquela bisavó, eventualmente enfezada, se não lhe faziam as vontades. No governo João Goulart, tomou horror à palavra “agrária”. Temerosa de que o comunismo lhe confiscasse a Fazenda da Lapa, e também de disputas que após a sua morte pudessem turvar a paz da clã, quis dividir ela mesma a propriedade. Tomou birra, também, da palavra “praia”, esse lugar distante que netos e bisnetos, antes reunidos ao seu redor, agora preferiam como destino nas férias. 

Viveu 100 anos e alcançou o privilégio raríssimo de poder requisitar: “Minha neta, dá cá teu neto”. Tinha, então, 127 bisnetos - e de todos sabia o nome. Na festa do centenário, achei que agradaria ao falar em grande feito, mas a vovó não gostou: “Nesta idade você já não tem um contemporâneo pra remédio!”. E desafiou: “Quero ver se vai ter festa se eu chegar aos 101!”. 

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Teve a sabedoria de não chegar: morreu dois meses depois da festança. 

Lembranças da vovó Chiquinha: suas mãos, cujo dorso a velhice tingiu de tons escuros, a dedilhar no piano uma canção de amor que para ela compôs o Joãozinho, seu marido João Antônio, que além de médico, político e jornalista era compositor e seresteiro, chegado à correspondente boemia - além de autor de uns contos, não digo eróticos, mas inequivocamente maliciosos, aos quais, por isso mesmo, levei anos para ter acesso. Galante, no dia do casamento o Joãozinho enfeitou sua Chiquinha com um par de brincos de ouro, que dali não sairiam enquanto ela viveu. 

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