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Veneza é palco de faroeste siciliano sem tiros

Na disputa pelo Leão, 'Via Castellana Bandiera', de Emma Dante, vai do humor ao drama à melhor maneira italiana

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio e Veneza
Atualização:

Alguém comparou o primeiro concorrente italiano, Via Castellana Bandiera, a um western siciliano. Mas um faroeste, diga-se, no qual nenhum tiro é disparado. O duelo é outro e pode ser descrito como um torneio entre teimosias. O filme, dirigido e interpretado por Emma Dante, natural de Palermo e figura conhecida no meio teatral italiano, é, de certo modo, uma fábula, apesar do tom realista que o percorre. Inclusive no uso do dialeto palermitano a maior parte do tempo, o que obriga a legendagem em italiano para outras regiões da península. Na história, tirada de romance homônimo da própria diretora, duas mulheres, o casal formado por Rosa (Emma Dante) e Clara (Alba Rohrwacher) vai à Sicília para um casamento. Rosa é de lá, mas fazia muito que não voltava ao Paese. No carro, as duas brigam full time e parecem a ponto de se separar. Perdem-se pela cidade e terminam no subúrbio. Numa rua estreita, topam com outro carro em sentido contrário, no qual se aperta a ruidosa família Calafiore. Marido, mulher, vários filhos e a avó, Samira (Elena Cotta), que dirige o automóvel. Nenhuma das duas motoristas dispõe-se a dar marcha a ré e ceder passagem à outra. E assim se instala o duelo entre duas cabeças duras - o tal do western à siciliana. O tom no começo é cômico, mas muda de direção, tornando-se um drama, à melhor maneira italiana. O humor vem tanto do uso do dialeto como de estereótipos associados aos sicilianos. A teimosia sendo um deles. Um jornalista italiano fez esta observação à diretora, perguntando-lhe por que sempre o Sul é retratado assim. Emma não perdeu o rebolado e disse que, a seu ver, isso poderia acontecer em qualquer região do país. Aliás, em qualquer lugar do mundo. Basta ver o que se passa nas brigas de trânsito em São Paulo e na maneira civilizada como os motoristas resolvem suas questões. Ou seja, a Sicília é apenas uma metáfora. Cômoda, porém, "porque é o meu lugar, é o sotaque que eu tenho, as pessoas que eu conheço, a língua que eu falo", afirmou. A seu ver - é também a nossa impressão - o tal "duelo ao sol" entre as duas teimosas simboliza a falta de diálogo entre posições antagônicas na sociedade, cisões cada vez mais acirradas e inconciliáveis. Com suas consequências trágicas, bem entendido. Nesta estreia na direção de cinema, a experiente Emma Dante opta pela simplicidade formal. Após um prólogo, em que as duas partes antagônicas são apresentadas em separado, a situação converge para a Via Castellana Bandiera. Ou seja, para uma locação única, onde a comédia e o drama se desenvolverão. Um solução econômica e conveniente para uma artista experiente, porém estreante em cinema, que traz a novidade para o campo onde sabe jogar. Também perguntaram-lhe isto. Por que o cinema? E Emma respondeu que a história, a trama em si, pedia um pouco do pó, do sol, do vento, do suor. Pedia carne. Pedia realismo que nem sempre o teatro é capaz de dar, e o cinema, com o close e a montagem, oferece com maior facilidade. Isso não impede, porém, que a estrutura dramática seja toda teatral, o que não representa problema. Aliás, as protagonistas absolutas, as duelistas da teimosia, são interpretadas por duas grandes damas do teatro - a própria Emma e a incrível Elena Cotta. Quatro camelos. O outro longa do primeiro dia de competição foi o australiano Tracks, de John Curran, que tem como protagonista Mia Wasikowska, a Alice de Tim Burton em sua adaptação de Lewis Carrol. Mia está mais crescidinha e, no caso, decide enfrentar outro tipo de aventura. A história é inspirada no caso real de Robyn Davidson, que atravessou o deserto australiano até chegar ao litoral com quatro camelos e um cão. O trajeto, para lá de áspero, tem 2.200 quilômetros e levou nove meses para ser vencido. O relato foi publicado pela National Geographic e transformado em livro. É uma viagem de iniciação, daquelas que alguém faz mais para descobrir a si mesmo que a um território inexplorado. O tema tem voltado com certa insistência no cinema, sintoma, talvez, de que o homem contemporâneo sinta-se enclausurado em seu presente. Isso é tema para especulação. De qualquer forma, a viagem, de Robyn, realizada nos anos 1970, faz-se em reação a uma vida jovem atormentada pelo suicídio da mãe e a um certo sentimento de desajuste ao mundo "normal". O longa de Curran é bonito e tem seus momentos. Abusa um pouco da fotogenia dos imensos espaços abertos da Austrália. Pouco aprofunda do autoquestionamento de Robyn e deixa-se levar por um trilha sonora invasiva e muitas vezes desnecessária. A impressão é de que o filme fica abaixo do material literário usado. Tudo somado, o primeiro dia de competição de Veneza 2013 começou bem. Mas não pode ser chamado de excepcional.

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