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Velhas novidades

Fauna de Brasília, agora sexagenária: roedores extintos e um pitbull bípede muito ativo

Por Humberto Werneck
Atualização:

Nos vagares da quarentena, exumei um escrito de mais de cinco anos atrás, e nele achei uma passagem que, por sua atualidade, me permito desamarrotar e reprisar. O ano é 2014:

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Sem prejuízo das penas a que se expôs ao verter grosserias e impropérios sobre a deputada Maria do Rosário e todo o povo brasileiro, o deputado Jair Bolsonaro mereceria ser punido pelo mau comportamento. 

Seu destempero veio desempoeirar em mim a lembrança de uma aula de Direito Penal em que o professor, depois de propor um caso – algum bolsonaro que, do alto de um prédio, despejara uma bolsa de excrementos sobre uma senhora que passava –, pediu aos alunos que capitulassem o crime e calculassem a pena. Não tive dúvida: tão sedento de justiça quanto empenhado em mostrar serviço, condenei o réu a uma larga temporada na cadeia. O mestre (tantas décadas depois, posso ver ainda a sua cara, em cuja acidentada topografia uma enorme, peluda, fremente verruga por pouco não rivalizava com o nariz), o mestre, eu dizia, encarou com condescendência o aluno ignaro e, balangando no ar um dedo envernizado pela nicotina, sentenciou, orgulhoso de sua pegadinha:

– Não há crime! Não há crime!

Como não?! Uma bolsa de cocô e fica por isso mesmo?!

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– Falta de educação não é crime! – sentenciou, triunfante, o professor.

Não dá para impor o uso de focinheira a pitbulls bípedes, eu sei. É dureza, mas na democracia há espaço até mesmo para quem queira acabar com ela. E mais assustador que Bolsonaro é o exército formado por eleitores que, tendo votado nele, provavelmente endossam suas pitbulices. 

Nos anos 50, um deputado perdeu o mandato por ter posado de cueca para uma revista. O que lhe parece mais indecoroso? Aquele strip-tease ou esse, em sentido figurado, que Bolsonaro vem encenando desde sempre?

O esbordoamento verbal, quase físico, da deputada Maria do Rosário – cujo “crime” foi condenar a ditadura – me lembrou também o que me disse a escritora Isabel Allende, em meio a uma divertida arenga feminista: 

– Vocês, machos, não tenham dúvida: quase toda a violência que há no mundo é causada pela testosterona! (Instintivamente me encolhi na cadeira, como na iminência de uma perda irremediável.)

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– Mas e o sexo? Sem testosterona, como é que fica?

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Isabel tinha acabado de publicar um livro delicioso sobre os prazeres da cama e da mesa.

– Problema nenhum – volveu ela: – Quando for o caso, a gente libera um saquinho, que nem esses de adoçante, pra vocês porem no café. Fica a sugestão: se um dia vingar, transformada em lei, a proposta da Isabel Allende, estejam os bolsonaros, com ou sem mandato, proibidos de tomar desse café turbinado. * Eu estava lá, levado por meu pai, e daquele assombro, a inauguração de Brasília, que neste 21 de abril completa 60 anos, me ficaram cacos na memória, hoje empoeirada como era a Capital que então se estreava. O menino de 15 anos viu passar glorioso, em carro aberto, o presidente Juscelino Kubitschek com seu sorriso chinês, sob um teto de aviões de uma esquadrilha da fumaça – e tão empolgado ficou, o bocó, que resolveu fumar também. Na Praça dos Três Poderes, mais de um visitante entrou com tudo em fachadas envidraçadas dos edifícios, “modernidade” à qual nem todo brasileiro estava habituado. No prédio do Congresso (isto lemos no jornal do dia seguinte), um segurança barrou a entrada de um cinquentão meio calvo e meio prognata, porque vestia blusão em vez de paletó, até que alguém identificasse o visitante: Oscar Niemeyer. 

Também pelos jornais se soube que um deputado gaúcho se tornara pioneiro em acidentes de trânsito em Brasília ao ser atropelado, sem maior gravidade, por uma Rural Willys – uma das estrelas da incipiente indústria automobilística nacional, ao lado do DKW-Vemag, do fusca (que ainda não tinha o apelido), do Dauphine, do Aero-Willys, do Simca-Chambord e, sensação das sensações, do luxuoso FNM 2000, fabricado no País sob licença da italiana Alfa Romeo e batizado “JK”. 

Na viagem, de Kombi, entre Belo Horizonte e o Planalto Central, vi uma fartura desses carros no acostamento, com os para-brisas de cristal estilhaçados pelas pedrinhas arrancadas do asfalto posto às pressas e arremessadas pelos pneus dos que iam na frente. Pontos de parada na estrada eram quase raridade, o que provocou uma espetáculo capaz de encantar Nelson Rodrigues, enviado à inauguração por um jornal do Rio – o das moças que, interrompendo subitamente a viagem de carro, corriam para o mato, à beira da rodovia. O pipi na estrada feminino, registrou o cronista, foi um ineditismo a mais a condimentar a inauguração de Brasília.

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Em meio a novidades arquitetônicas com a tinta ainda fresca, fazia parte da visita conhecer também, quase à guisa de antiguidade, o Catetinho – a primeira edificação na nova Capital, de madeira, erguida em dez dias, em novembro de 1956, a partir de projeto de Oscar Niemeyer, para abrigar o presidente em suas viagens ao canteiro de obras. O nome, contava-se, foi dado pelo compositor e instrumentista Dilermando Reis, com quem JK tomava aulas de violão. Contava-se também, em tom de divertida epopeia, que, batido o último prego no Catetinho, alguém sacou uma garrafa de uísque para comemorar. Mas cadê gelo? Ninguém tinha pensado nisso, e ainda não havia energia elétrica naquela vastidão desértica. Estavam todos conformados com a ideia de encarar o drinque na versão cowboy, quando o céu providenciou uma tempestade. Terá sido a primeira vez que se bebeu uísque com granizo.

Já não me lembro, por fim, se foi então que ouvi falar de uma singularidade de Brasília – um roedor (ironias à parte) até então desconhecido, descoberto pelo biólogo João Moojen de Oliveira no cerrado goiano. O cientista mineiro achou apenas nove desses roedores, e nenhum outro foi visto desde então. Batizada por seu descobridor, a espécie, hoje provavelmente extinta, entrou para os registros zoológicos internacionais com uma denominação que, ao menos na intenção, homenageia o criador de Brasília e os 60 mil operários que a puseram de pé: Juscelinomys candango.

Curiosidade: que nome daria o professor João Moojen de Oliveira a um pitbull bípede com o qual topasse, nos dias de hoje, a despender maus modos e perdigotos em Brasília?

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