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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Velha nova república

Atualização:

Antes denominávamos favela. Agora, ocupação. No Rio, comunidade. Mudamos para retirar o estigma da denominação anterior sem mudarmos a desigualdade e injustiça social que elas revelam, o déficit habitacional brasileiro, que começou no começo da República, com soldados que combateram o movimento acusado de monarquista de Antônio Conselheiro, numa ocupação num morro chamado Favela, “larga planura ondeante onde se erigia o arraial de Canudos...” (Euclides da Cunha), por causa da planta “favela”, a mandioca-brava.

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Nova República é uma ocupação na Baixada Santista, com vista para São Vicente, a primeira vila brasileira, que entra pelas frestas da Mata Atlântica, fundada por sobreviventes da Vila Socó, favela de palafitas destruída em 1984 pela explosão de um duto sem manutenção que se rompeu da Petrobrás, vazou 700 mil litros de gasolina, incendiou 500 barracos, matando 93 pessoas confirmadas (400 desaparecidas). 

Era o sexto vazamento da Petrobrás, a empresa mais advertida e multada pela Cetesb na época. Todos fingiam que o problema não existia. Muitos problemas sociais as autoridades não veem. Oito funcionários da empresa foram condenados pela Justiça. Nova República é também uma ocupação no Morumbi, que desmoronou e soterrou 32 dos 120 barracos, provocando a morte de 14 moradores (12 crianças) em 1989, um ano depois da promulgação da Constituição da Nova República, que elevou a Petrobrás ao símbolo de um novo e próspero Brasil.

Um terreno vizinho era aterrado para receber obras de um condomínio de luxo, embargado pela Prefeitura. Os proprietários tinham sido multados várias vezes. Quatro anos depois, o dono do terreno, o responsável pela obra e quatro funcionários da Prefeitura foram condenados.

A desigualdade social se manteve na Nova República, período designado para indicar a retomada do poder pelos civis em 1985, o fim da ditadura militar, cujo pilar foi a Constituição de 1988, cujos pilares são: eleições livres, sistema político multipartidário e, sobretudo, liberdade de culto, opinião, manifestação e expressão.

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A Constituição, costurada numa grande e empolgante mobilização durante a Constituinte, é das mais avançadas. Mas deu numa Justiça cujos juízes de primeira instância bloqueiam redes sociais, censuram instalações artísticas, embargam peças de teatro por motivos religiosos, não chegam a um consenso sobre violência contra as mulheres, ganham auxílio-residência, mesmo habitando na mesma cidade em que trabalham. 

Muitos deles recebem salários superiores ao salário-base de R$ 33.763 que designa a Constituição (teto dos ministros do STF), graças a penduricalhos, auxílios, indenizações, gratificações. 

Segundo O Globo, três de cada quatro juízes brasileiros receberam remunerações acima do teto. Três de cada quatro juízes encontraram formas e atalhos, com respaldo legal, para driblar o que manda a Constituição. Um desembargador de Rondônia ganhou num mês R$ 111.132,44. O recorde ficou com Sergipe. Uma excelência faturou R$ 141.082,20 em agosto de 2016.

A Nova República é gerida por mais de 30 partidos políticos. A maioria dos deputados que estão na Câmara não foi eleita pelo voto direto. Entraram por suplências e coligações. 

Criaram o sentido de governabilidade: repartem o poder e suas empresas entre aliados. Nasceu o maior organograma de corrupção da História, que rapou, inclusive, fundos de pensão.

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Algumas correntes políticas defendem a volta dos militares. Um deputado, Jair Bolsonaro, homenageou um notório torturador no dia em que se votou o afastamento de uma presidente da República. Assumiu o poder um ministério com seis indiciados pela Justiça. Inclusive o chefe da nação, denunciado por crimes de corrupção e obstrução de justiça.

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A Nova República propiciou estabilidade econômica, abertura dos portos, aumento de programas sociais, e que a esquerda assumisse a Presidência, aliada a antigos parceiros do regime militar. Sem traumas. Conseguiu que ambientalistas se sentassem com ruralistas num mesmo ministério, que aliados da tortura frequentassem os mesmos corredores que torturados. 

Mas reservas indígenas, demarcadas na Constituição de 1988, foram invadidas. A floresta protegida foi derrubada. Quilombolas são questionados. A saúde e a educação pública são uma tragédia.

Na Nova República, segundo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 14% dos brasileiros vão ao cinema, 96% não frequentam museus, 93% nunca foram a uma exposição de arte, 78% jamais assistiram a um espetáculo de dança. Segundo Ibope, leitura ficou em 10.º lugar quando o assunto é o que gosta de fazer no tempo livre. Perdeu para televisão, música, internet, reunir-se com amigos, família, sair com amigos, filmes em casa, escrever, redes sociais, jornais e revistas, praticar esporte. 

Em 90% dos municípios, não há cinemas, teatros, museus ou centros culturais. A censura voltou. A religião voltou às escolas. O debate ideológico, a filosofia e a sociologia, saíram. Templos de religiões afro são atacados. A violência urbana é epidêmica. O crack, uma doença social. O tráfico virou organização.

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Mulheres se empoderam, mas continuam a ser assediadas. O aborto é crime. Homossexuais podem se casar, mas eventualmente são agredidos. Cotas para negro democratizam o ensino e sanam uma dívida social, mas o racismo está longe de acabar.  A Nova República tem muito pouco de novo. A base da sua economia é a mesma da monarquia: minério, carne, grãos, cana de açúcar (como nos ciclos), vasto território e mão de obra barata. A Nova República nasceu velha.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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