Valentim Facioli analisa delírio realista de Brás Cubas

Em Um Defunto Estrambótico ele discute como esta obra tão esquisita de Machado de Assis, que ora diz a verdade, ora deixa claro que pode estar mentindo, é classificada de "realista"

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Por Agencia Estado
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O estranhamento começa pela conhecidíssima dedicatória: "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas." Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, obra em que o defunto autor segue atrapalhando aqueles que procuram lê-lo como um romance tradicional, com poucos refrescos, até o fim. Até hoje, acredita o professor aposentado da USP Valentim Facioli, Memórias Póstumas é um livro que provoca estranhamento. E cuja leitura, "uma obrigação" de todo brasileiro letrado, nem sempre é feita com a profundidade merecida. Um exemplo disso seria a desproporção entre a grande quantidade de estudos dedicados a Dom Casmurro e a raridade de livros e teses dedicadas a esse primeiro livro "realista" de Machado de Assis. Facioli acaba de lançar Um Defunto Estrambótico (Nankin, 168 págs., R$ 16). A aparência e o objetivo inicial remetem para uma obra paradidática. Sem negar essa função, contudo, o livro aprofunda algumas abordagens da obra machadiana. Além de estar fortemente ligada à análise que faz Roberto Schwarcz em Um Mestre na Periferia do Capitalismo (Duas Cidades/Ed. 34), o livro de Valentim Facioli discute a filiação de Machado de Assis à chamada sátira menipéia ou luciânica, uma forma de inverter o mundo que deitou raízes na tradição ocidental e que tem como grande referência O Diálogo dos Mortos, de Luciano de Samósata (um estudo citado por Facioli, de Enylton de Sá Rego, mostra a presença de uma edição das obras completas desse autor na biblioteca de Machado de Assis). No Brasil, Mário de Andrade (Macunaíma) e Oswald (Memórias Sentimentais de João Miramar), seriam os mais representativos "seguidores" dessa tradição, depois de Machado. Essa filiação não é exatamente uma novidade: está explícita logo na abertura do livro, em que Brás Cubas conta: "Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado." Xavier de Maistre (Viagem à Roda do Meu Quarto) e Laurence Sterne (A Vida as Opiniões do Cavalheiro Tristam Shandy) são autores do século 18 que usam do recurso de criar um mundo às avessas, cômico e fantástico, para compor suas obras, transformando o anormal em normal - método a que também recorre Swift, autor de As Aventuras de Gulliver. Facioli discute, no entanto, como uma obra tão estrambótica, esquisita, com um narrador que ora diz a verdade, ora deixa claro que pode estar mentindo, é classificada de "realista". Essa é, na opinião de Facioli, a força de Machado de Assis: ele se apropria de uma forma clássica e a renova - o delírio passa a conviver com um texto capaz de criticar com acidez e ceticismo seu tempo e seu meio. "A sátira cai como uma luva num país em que as idéias liberais conviviam com a escravidão", diz Facioli. Machado, "nem conservador, nem evolucionista, nem positivista, nem cientificista, nem republicano, nem militante abolicionista", como definiu Alfredo Bosi em O Enigma do Olhar, "educara o seu olhar em valores e modos de pensar que vinham da tradição analítica e moral" dos séculos 16 e 17. Em seus livros, mantém um distanciamento estratégico do mundo que o cercava. Estratégico, mas não inerte: assim, ele relativiza "em muito e criticamente, senão com estranhado ceticismo, o progresso europeu e as supostas vantagens que os homens e os valores de lá pudessem representar como contraponto adiantado ao nosso atraso neocolonial e escravista, embora sem nunca perder de vista o impasse", escreve Facioli. Ou seja, Brás Cubas, bacharel em Coimbra e "um acadêmico estróina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático e liberalismo teórico" revela um mundo (e um País especialmente) em que o liberalismo era usado como argumento inclusive para a manutenção da escravidão - os proprietários de escravos reivindicavam seus direitos de propriedade. E, tudo isso, sem que Brás Cubas se envolva em conflitos diretos com os pobres e escravos de seu tempo. O grotesco a que Machado recorre, tão bem expresso pelo verme já citado, permite que o autor dê um salto sobre os limites da produção literária brasileira de então. A história de Brás Cubas, um homem que sonhou com a glória de criar um "emplasto anti-hipocondria", ou seja, um remédio para curar os que estão à procura insana de remédios para males imaginários, passa a exigir do leitor brasileiro uma atenção e uma desconfiança em relação ao narrador que não encontrava paralelo entre os autores da época, mais preocupados com sua função pedagógica e civilizadora. Machado, com o estrambótico e delirante Brás Cubas, muda o rumo da literatura brasileira. Que passa, então, da infância para a idade adulta. Nomes - Um nome pode ser apenas um nome. Mas também pode não ser. Para Valentim Facioli, Machado de Assis escolhia os nomes de seus principais personagens buscando não apenas significações, mas também muita confusão. E, mais uma vez, o papel da sátira ganha força. Citando personagens de Rabelais (Gargantua e Pantagruel), Cervantes (D. Quixote, Sancho Pança) e Voltaire (Cândido, Micrómegas), entre outros, Facioli diz que "a sátira menipéia tem especial predileção pelos nomes estravagantes e estranhos". Mas Brás Cubas, apesar de estranho, não era único: afinal, Brás Cubas também fora o fundador de Santos e São Vicente. O próprio narrador explica que esse fora um artifício do pai, uma falsificação. Apenas uma referência entre tantas outras a que pode estar ligado o nome. Para Facioli, o nome Brás Cubas pode remeter para uma relação entre Brasil e Cuba. Em comum, na época em que Machado escreveu a narrativa, os dois países comungavam o fato de serem os últimos a manterem a escravidão nas Américas. Também foram os últimos a abolir o tráfico negreiro. E, finalmente, Cuba também utilizara de chicanas para adiar o fim da escravidão, com leis semelhantes às do Ventre Livre e dos Sexagenários. Outra possível motivação levantada por Valentim: Machado desejaria insinuar que a família de Brás era fabricante de cubas que carregavam os produtos utilizados para pagar os escravos trazidos da África. Tanoeiros que eram os antepassados de Brás, eles escondiam sob a inventiva e a falsificação a verdadeira finalidade de seu trabalho. São Brás, protetor dos engasgados e dos males da garganta, também é invocado para sugerir as razões do batismo do personagem. "Conta-se que enquanto era levado para o martírio (início do século 4.º), tendo a cabeça cortada e as carnes rasgadas com um pente de ferro, ainda arranjou tempo para um milagre, salvando a vida de um menino engasgado com uma espinha de peixe", escreve Facioli. "Do ponto de vista da representação da verossimilhança a história do santo e seus milagres não merecem maior credibilidade que as histórias da genealogia de Brás Cubas e sua família." Também é aventada a hipótese de Brás Cubas ser um enigma relacionado a um livro sobre a história do catolicismo que Machado tinha em sua biblioteca. Lembraria um líder de uma revolta judaica, cujo nome contém o radical KZB, que em línguas semíticas significa "mentir", "enganar com lisonjas", "ser falso". Facioli também recorre à etmologia da palavra brasil (cuja origem remonta a uma palavra árabe, "wars") e ao romance picaresco Histoire de Gil Blas de Santillane, uma narrativa em primeira pessoa, para ajudar a compor hipóteses em torno do nome do personagem. Facioli admite, porém, que o nome Brás Cubas pode ter outras origens que não essas. Pode ser mesmo que nenhuma dessas hipóteses tenha concorrido na escolha feita pelo autor. O fato é que, "maliciosamente e sinuosamente, Machado de Assis concentra no nome de Brás Cubas diversas possibilidades de sentido e ambigüidades, que insinuam ou revelam, pelo enigma, pela charada ou pela paródia, características do narrador-personagem e suas memórias". De uma forma ou de outra, acha o autor de Um Defunto Estrambótico, Machado filiou Brás Cubas a "aventureiros, comerciantes, traficantes de escravos e seus auxiliares diretos e indiretos, arrivistas, pseudofidalgos, falsos guerreiros, que, se pode dizer, realizaram a conquista e a colonização do Brasil". O hábito de carregar de sentido o nome dos personagens também pode ser encontrado em outros livros de Machado: rapidamente, portanto sem uma pesquisa mais rigorosa, Valentim cita o caráter religioso e irônico de Bento Santiago, narrador de Dom Casmurro, e o nome do conselheiro Aires, que em Memorial de Aires passaria em revista os "ares do Império". Em seu conjunto, o livro de Valentim Facioli procura estabelecer uma íntima relação entre a vida e os conflitos sociais do Brasil do século 19 e o texto machadiano, ainda que o narrador-personagem procure, aparentemente, diminuir essa proximidade. Apesar de se apresentar como uma mediação entre a alta cultura e os estudantes do ensino médio e da graduação, "sem baratear as idéias" ("Meu objetivo é instigar o leitor a enfrentar não só Memórias Póstumas, mas também Um Mestre na Periferia do Capitalismo", diz o autor), a leitura de Facioli também combate uma tendência que ganha força nos meios acadêmicos, especialmente nos Estados Unidos: a de tratar Machado como um autor "pós-moderno". "Essa é uma apropriação formalista do Machado", diz. "É um modo de não entender nada", complementa. Na sua opinião, esse modo de lê-lo "retira a sua eficácia como denúncia à classe dominante brasileira".

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