Uma receita para formar amantes da leitura

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Por Agencia Estado
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Literatura e artes em geral são como futebol: todo o mundo dá palpite a respeito. Porque todo o mundo se sente meio autoridade na matéria. O mais complicado é que se trata da questão do gosto. Dizer que gosto não se discute é tomar a reta mais curta para a barbárie. O problema está na construção do sabor, na formação do sujeito em termos intelectuais e de sensibilidade. Borges, grande mestre, nos seus tempos de professor disse que procurava despertar nos discípulos a afeição pela leitura, além dos currículos escolares, além das classificações, além da história. Ele sabia, sem o amor pela coisa ninguém vai adiante, o interesse se evapora, quando não dá lugar à frustração odienta. Borges, ao mesmo tempo em que transmitia a paixão pela literatura, e ninguém melhor do que ele encarnou essa paixão, deixava transparecer o alumbramento diante da maravilha dos idiomas e da cultura, das emoções e supostas mesquinharias. Com a ironia mais aguda, fez da própria vida parte do jogo literário. Assim, quando ele coloca ´O Médico e o Monstro´ como obra-prima ou diz que gostaria de passar o resto do tempo relendo Frankenstein, ou que, na verdade, o conhecimento de determinado livro vale todas as bibliotecas de Babel, está ardilosamente desafiando seu leitor a conferir a afirmativa do mestre. Quer dizer, será preciso trabalhar duro na pedreira até que cada um tenha a sua própria noção de gosto. Era a preferência dele pela charada. Por isso parece tão risível o título do professor e jornalista britânico John Carey: Pure Pleasure (Puro Prazer), publicado pela Faber and Faber. Puro Prazer por que, Mr. Carey? Bem, segundo diz no prefácio, resolveu escrever o livro, publicado antes em jornal, pois uma de suas preocupações é o futuro da palavra escrita. Teremos livros no milênio que começa? - perguntaria ele com banal, oportuna e simpática leviandade, num estilo bonito. Está, portanto, numa missão sagrada tendo o objetivo de limpar a sujeira que impede a aproximação entre o leitor em potencial e a literatura. Com bom senso, mostra que ler não é elitismo: o livro está acessível (isso na Grã-Bretanha claro) nas bibliotecas, por exemplo. Mas persistem, e isso é universal, os traumas provocados em sala de aula pela imposição de clássicos ou nem tanto aos pobres alunos, que são iniciados na prática da leitura pelo lado do equívoco. Em vez de desasná-los, condenam ao estábulo. A receita de Carey fica longe da sofisticação intelectual de Borges. Seu objetivo aparentemente é o mesmo, mas sem a finura do escritor argentino. O professor britânico apresenta uma relação de obras escolhidas conforme seu gosto mas pautado pelo que julga atraente aos olhos do leitor... comum. Então, começa por Conan Doyle, o que, poucos discordarão, é um belo início. Em seguida passa para um peso-pesado, Gide, e seu Imoralista, num passo rumo às altas questões e num aceno mercadológico dirigido ao público gay. Bem, a seleção dos autores é ótima: temos ali Conrad, Forster, Chesterton, Wells, Gorky, Hardy, Joyce, Lawrence, Eliot, Mansfield, Kingsley Amis, Golding, V.S. Naipaul, Greene, Thomas Mann, Yates, Auden, Günter Grass, Sartre, Heaney, Ted Hughes, Updike, Larkin, etc. Observa-se que o autor, na sua busca do mediano, procura apresentar o divertido, o inteligente, o bom gosto enfim ao alcance de quase qualquer um desde que esse quase qualquer um tenha recebido boa formação escolar. Há acasos de seriedade em seu trabalho. De Sartre, por exemplo, pinçou As Palavras, um grande livro sem dúvida, talvez melhor do que A Náusea, prejudicada pela pose intelectual à beira do insuportável. E talvez o melhor conto escrito por Sartre. Deve ter sido um bom acaso. Joyce escolheu O Retrato do Artista Quando Jovem, um dos grandes livros do escritor, mas um tanto aquém do fuzuê vertiginoso de Ulisses. Aí está o ponto. William Faulkner é uma ausência, Proust outra. Agora uma pergunta: Faulkner e Proust são autores chatos? De Thomas Mann ele pegou o Felix Krull, por julgá-lo com certeza mais atraente do que A Montanha Mágica e Dr. Fausto, mais divertido enfim. Em Busca do Tempo Perdido ficou fora. Carey é um ótimo resenhista, sabe como redigir textos curtos com elegância e graça a respeito de obras e temas relevantes e nesse sentido torna-se mesmo exemplar. No entanto, a busca desse vago e nefasto critério do mediano desemboca no porto seguro da mediocridade. Todos conhecem a anedota segundo a qual Oswald pediu a um amigo que lhe resumisse Proust. Quem acha graça nisso tem mais um manual à disposição, com a vantagem de ser em inglês.

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