Uma ópera bem teatral

Diretor do Teatro da Vertigem conduz montagem da obra Orfeu e Eurídice Antônio Araújo,

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Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

Antônio Araújo só dorme depois que amanhece. Nos últimos dias, tem passado as noites em claro. Corre contra o tempo para acertar as luzes, burilar efeitos, deixar tudo pronto para sua montagem de Orfeo ed Euridice. Com estreia marcada para hoje, a ópera carrega a assinatura do reconhecido diretor. Assim como costuma fazer à frente do Teatro da Vertigem, aqui, ele também deixa o conforto das salas de espetáculo convencionais para apoderar-se de um novo espaço. Mas, habituado a processos que duram dois anos, teve apenas três semanas. Sua encenação para a obra de Christoph W. Gluck (1714-1787) marca a inauguração da primeira etapa da Praça das Artes: complexo arquitetônico de salas de ensaio e sedes das escolas do Teatro Municipal. Essa é a sua segunda ópera. Como foi montar Dido e Enéas? E o que você trouxe dessa experiência anterior? Apesar de adorar ópera, até aquele momento nunca tinha trabalhado com cantores líricos. Havia, então, um receio grande. Mas tive a experiência oposta. Foi muito feliz, tanto o resultado quanto o trabalho com as cantoras, o maestro. O fato de já ter vivido isso em Dido e Enéas me traz, portanto, algum acúmulo de experiência para essa montagem. Ainda que eu continue a sofrer com o pouco tempo. No Vertigem, temos dois anos de processo. Aqui, foram três semanas. É muito pouco para fazer tudo isso. Especialmente porque vocês estão novamente ocupando um espaço não convencional. O que não é habitual para a ópera, mas é o que você costuma fazer no seu trabalho com o Vertigem. Ainda que exista uma tradição do grupo de fazer isso, ocupar um espaço não convencional sempre demanda mais tempo. Você precisa primeiro entender o espaço, criar uma conexão. É uma apropriação diferente. Tenho até brincado, dizendo que se eu aceitar novamente dirigir uma ópera em três semanas, podem me interditar. Passei essa noite em claro. Vou passar a próxima também. É muito angustiante. Por outro lado, tive novamente uma sorte incrível com as cantoras. Uma disposição e uma generosidade, que contrariam aquela imagem da cantora lírica como diva, cheia de vontades. Acho que todo mundo sai ganhando com esse tencionamento entre o teatro e a música. É um diálogo rico. Como é que você está utilizando esse espaço? Uma área ainda em construção. Essa área que estou ocupando é minha terceira proposta. Primeiro, pensei em fazer uma ópera itinerante. O que não seria possível por conta da orquestra, que não pode se movimentar. Depois, apresentei um segundo projeto, mas que colidia com o cronograma da obra. Então, tive que pensar em outra encenação, na qual estamos ocupando a futura sala de ensaio da orquestra. É uma área grande, onde tentamos lidar com as limitações. Essa é uma ópera que, para o teatro, tem um sentido especial. O Gluck reinventa a tradição operística ao olhar para o drama, ao colocar a música a serviço da ação. Como foi para você, como diretor teatral, lidar com essa obra? Talvez, até por isso eu tenha sido chamado para fazer justamente essa obra. É uma ópera da qual gosto muito: é bastante econômica e tem cenas que são teatro puro. A cena do terceiro ato, em que Orfeu e Eurídice estão juntos, é um primor de dramaturgia. Trabalhei com as cantoras nesse sentido. Tentando entender todos os textos, pedindo para que elas falassem os diálogos, antes de cantar. Foi só depois que trouxe a música. É verdade que você alterou um pouco a ópera, aproximando-a do mito grego? Estamos fazendo a obra na íntegra. Não cortamos nada, do início ao fim. O que me incomoda nessa ópera é o final dela. Porque, para mim, esse sempre foi um mito trágico. Aquela imagem do Orfeu despedaçado pelas bacantes, a sua cabeça boiando no rio e, ainda assim, chamando por Eurídice. Tudo isso é muito forte para mim. E aquele final feliz da ópera, com a redenção amorosa, os balés. Isso me soa um pouco estranho. Ainda que isso tivesse um sentido para o Gluck naquela época, naquele contexto. É possível, sim, entender o contexto. Mas isso não me faz gostar dessa opção. O que eu propus, então, foi não mudar nada na ópera e trabalhar apenas com a encenação. De certa maneira, relativizo esse final feliz. Há algumas encenações que mudam o libreto e a música. A Pina Bausch, por exemplo, cortou o final inteiro e termina na tragédia. Eu não fiz nada disso, mantenho a versão da ópera de Viena. Mas é claro que isso me gerou um problema. Trata-se de uma música super alegre. A intenção, então, é trazer, por meio da encenação, uma nota dissonante, irônica, dentro dessa alegria. Aqui, o Orfeu não morre despedaçado. Mas existe a ideia de uma morte simbólica. Como se Orfeu acreditasse em um final feliz, quando, na verdade, estava sendo manipulado. Outro ponto que chama a atenção na sua versão é a sua visão do inferno, muito próxima da realidade. Essa ideia de um lugar de larvas e monstros não me diz muito. Quis pensar em um Orfeu que não desce ao inferno. Como se ele estivesse aqui, à nossa vista. Inferno é a cidade onde a gente mora, São Paulo. Orfeu e Eurídice é uma ópera que prevê uma série de balés. De que maneira isso aparece na montagem? Os balés foram mantidos. Para fazer as coreografias, convidei o Alejandro Ahmed, que foi coreógrafo do Cena 11. Até pela história dele, ele repensa esses balés, que são originalmente aqueles minuetos, e leva isso para outro lugar. É uma movimentação de outra natureza. Você também tira a orquestra do fosso e a coloca em cima do palco. Por quê?O mito do Orfeu representa essa figura do artista, do cantor. Por isso coloquei os músicos em posição de destaque. Tudo acontece ao redor deles. A orquestra está em um lugar central. diretor e professor de teatro

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