Uma língua própria para cada criação

Essa seria a maior chave do sucesso do Grupo Corpo, que faz 35 anos

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Por Análise: Helena Katz
Atualização:

Lecuona.

Coreografia de 2004 foi reapresentada a pedido do público em votação aberta

 

 

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A temporada que o Grupo Corpo apresentou até ontem, no Teatro Alfa, em São Paulo, celebrou seus 35 anos. O programa de aniversário foi montado por quem atendeu ao convite de votar na coreografia que gostaria de rever. Tradicionalmente, a companhia reapresenta no ano seguinte a obra estreada no ano anterior. Assim, Ímã já estaria no espetáculo de 2010, que se completou com a vencedora: Lecuona (2004). Essa escolha pode iniciar uma reflexão sobre o que foi sendo consolidado pelo Grupo Corpo durante o seu vitorioso percurso. Afinal, a exuberante sucessão de pas de deux de Lecuona atesta que a maestria de Rodrigo Pederneiras na composição de duetos toca sua plateia de maneira especial. Em Ímã, ele continua a trabalhar essa especialidade quando burila formas de colocar duas pessoas em cena, estejam ou não dançando juntas na forma convencional. Sua espantosa capacidade exploratória da articulação entre dois bailarinos parece inestancável.Mas talvez a contribuição mais expressiva do Corpo esteja no modo como lida com o que põe em cena. Rodrigo desenvolve língua própria com as coreografias que inventa, e isso seria suficiente como marca distintiva. Porém, há algo além dessa marca. Quando se observa a coleção de coreografias produzidas pelo grupo, percebe-se que, aos poucos, o processo de criação foi sendo iniciado antes do momento em que a coreografia passa a existir. Quando escolhem encomendar as trilhas sonoras, mergulham em uma relação distinta entre música e dança. A feitura dessas composições não ocorre separada da proposição dos movimentos que, mais adiante, ganharão seus desenhos. Eles começam bem antes de serem materializados nos corpos dos impecáveis bailarinos da companhia e não se encerram quando se fixam em uma partitura. Pois que também o tipo de espacialidade indicado para lidar com os movimentos, o tipo de figurino que pode vestir cada bailarino e a luz capaz de nos fazer ver o que está em jogo - cada um desses itens participa de um mesmo e único processo de criação. Luz, cenários e figurino nascem da família de inquietações que ata música e dança. Com o Grupo Corpo, fomos entendendo que uma obra de dança não se consitui por uma coreografia que se ajusta a uma música e depois é vestida por um figurino, um cenário e uma iluminação. Embora continue a usar todos esses elementos, o faz de outra maneira. Em vez de buscar a soma equilibrada dessas partes, transforma cada uma em argumento dentro de uma única lógica. Trata-se de uma lógica que ecoa a daquela arquitetura que rejeita os efeitos e os enfeites. A paulatina redução da equipe de criação a somente Paulo Pederneiras (direção, iluminação e cenografia), Rodrigo Pederneiras (coreografia) e Freusa Zechmeister (figurino) talvez tenha a ver com isso.Seu legado mais precioso é justamente seu entendimento do que seja obra de dança. Aos mais impacientes, pode parecer conversa fiada a história de fazer da obra de dança um assunto. Mas vale a pena lembrar que sobretudo na dança, porque ela existe somente enquanto um corpo a realiza, a questão do que permanece e do que é impermanente ganha contornos muito determinantes. O jeito como o Grupo Corpo trata suas produções explode os limites do exigente controle de qualidade. Não se refere somente à impecável condição técnica do que está em cena, e que começa no desempenho preciso do seu elenco de estrelas e passa pelo zelo por cada um dos mínimos detalhes do que está no palco.Se olharmos para o comecinho do Grupo Corpo, em 1975, para a Maria, Maria que se manteria por nove anos em cartaz, reconheceremos indícios desse comportamento. A busca pela justa medida já estava lá. O tipo de dança que lhes interessa mudou, mas o compromisso em continuar a perseguir a justa medida foi o que lhes fez, muito mais adiante, aproximar a sua dança da arquitetura e a produzir uma categoria exclusiva de excelência.

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