Um Vinicius para se levar debaixo do braço

Pasta contendo materiais avulsos - fotos, originais, desenhos, bilhetes - vai ser lançada na quarta-feira, como aquecimento para a festa dos 90 anos do poeta

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Por Agencia Estado
Atualização:

Ninguém menos arquivo, menos nome de praça e menos agenda do que Vinicius de Moraes - ninguém foi mais estabanado para guardar coisas, ninguém ligou tão pouco para homenagens e ninguém gostou menos de hora marcada. "Ser carioca é ter, como programa, não tê-lo", ele dizia, e sustentou isto até sua morte, em 1980. Mas, agora, como aquecimento para as comemorações dos 90 anos do poeta - que só começarão no dia 19 de outubro de 2003 -, Vinicius, chegando adiantado pela primeira vez para alguma coisa, tornou-se exatamente arquivo, nome de praça e agenda. Arquivo, não. Arquivinho - o título é Um Arquivinho do Poeta. Trata-se de uma pasta, dessas de papelaria (só que incrementada), cheia de pequenas preciosidades avulsas em torno de Vinicius, produzida pela nova editora Bem-te-vi, do Rio, a sair na próxima quarta-feira. Pode ser a inauguração de um gênero literário. É como se o leitor tivesse acesso a uma gaveta da família, metesse a mão e fosse tirando coisas que nunca esperava ver na vida: cartas, bilhetes, originais, fotos, desenhos, pinturas - só faltou um rol de roupa ou uma meia velha. Tudo solto, manuseável, coisa mesmo para colecionadores. Já a praça é a praça Vinicius de Moraes, que se inaugurou ontem em São Paulo, no Morumbi. Mas, nesse caso, o ineditismo é menor porque, afinal, Vinicius já é rua em Ipanema há 21 anos. E a agenda, Anotações com Arte - Vinicius de Moraes, produzida por Fred Rossi, é tão caprichada que dá pena conspurcá-la com anotações de hora marcada no dentista ou de almoços com chatos. Mas o importante é o Arquivinho, organizado por Lélia Coelho Frota, com produção gráfica de Cecília Jucá de Hollanda. É um Vinicius para se levar debaixo do braço. Ao folhear aqueles fac similes, você mergulhará no jeito casual ("dessacralizado", segundo Lélia) com que Vinicius levava a vida, tendo como companheiros de estrada figuras que, como ele, fazem hoje parte da História. Há uma carta de Carlos Drummond de Andrade, de 23 de junho de 1980, duas semanas antes da morte de Vinicius, lamentando não ter ido visitá-lo no hospital por ele também, Drummond, estar doente. Há uma carta de Manuel Bandeira, sem data, mas certamente de 1958, cumprimentando Vinicius em Montevidéu porque um de seus "sambas-canção", cantado pela "divina" (Elizete Cardoso), estava estourando no Rio - bem provável que fosse Chega de Saudade, do LP Canção do Amor Demais. Há um cartão-postal de João Cabral de Mello Neto, mandado de Barcelona e datado de 1949, em que o também poeta-diplomata (e campeão mundial de enxaqueca) avisa que vai fazer uma operação na cabeça. E há um bilhete de Orson Welles, sem data, mas dos anos 40, dizendo a Vinicius para ignorar a notícia de que teria caído de um andaime de três metros de altura, como publicaram os jornais de seu arqui-inimigo Hearst, e convidando Vinicius a almoçar um dia desses - os dois moravam então em Hollywood. Há a reprodução de um retrato (óleo sobre óleo) de Vinicius por Portinari, de 1938. Na vida real, este quadro foi das poucas coisas que Vinicius tentou levar de casamento em casamento, junto com a clássica escova de dentes, nem sempre conseguindo - deixava-o para trás com alguma ex-mulher, recuperava-o anos depois e, em seguida, ficava sem ele de novo (hoje pertence a uma coleção particular). Há um desenho de Vinicius por Carlos Scliar, de 1956. Há um amoroso texto de Tom Jobim para Arca de Noé II, de setembro de 1981, em que ele se refere a Vinicius, morto mais de um ano antes, como se o poeta estivesse vivo. Há o manuscrito do Soneto da Separação ("De repente, do riso fez-se o pranto/ Silencioso e branco como a bruma..."), com os rabiscos e correções originais de Vinicius e ilustração de seu cunhado, o grande Carlos Leão. E há a partitura original de Loura ou Morena, o fox-trot da parceria Haroldo Tapajós (música) e Vinicius de Moraes (letra), de 1932 - "É a lourinha, é a moreninha/ Meu Deus, que horror!/ Se da morena vou me lembrar/ Logo na loura fico a pensar/ Louras, morenas/ Eu quero apenas a todas glorificar". O fox foi gravado pelos irmãos (Paulo e Haroldo) Tapajós naquele mesmo ano, o que significa que a estréia de Vinicius na música popular se deu simultaneamente à como poeta, porque foi também em 1932 que ele publicou, numa revista católica, seu primeiro poema. Há o manuscrito de um soneto de Pablo Neruda para Vinicius, de 1966, que começa com "No dejaste deberes sin cumplir" e termina com "Del pasado aprendiste a ser futuro", ilustrado por uma foto do mar, por Pedro de Moraes. Há um pequeno ensaio de Antonio Candido tirado de seu livro Brigada Ligeira e Outros Escritos, em que ele elogia em Vinicius a "capacidade de dessolenizar as coisas solenes para guardar o que têm de sério no meio da pilhéria aparente". A capinha do ensaio é uma foto de Moacir Gomes mostrando Drummond, Vinicius, Bandeira, Mario Quintana e Paulo Mendes Campos nos anos 60, placidamente sentados num banco de jardim na cobertura de Rubem Braga em Ipanema - grandes tempos em que tanta gente boa se reunia sem muito motivo. Há o poema A Rosa de Hiroxima, de 1945-1946 ("A rosa radioativa/ Estúpida e inválida/ A rosa com cirrose/ A anti-rosa atômica/ Sem cor sem perfume/ Sem rosa sem nada"), dentro de uma rosa-invólucro. E há também um jogo de fotos: Vinicius com Pixinguinha, Tom, Chico Buarque, Neruda, Ferreira Gullar, Oscar Niemeyer, e uma foto da prole Moraes (Suzana, Pedro, Georgiana, Luciana e Maria), que hoje administra o seu espólio com uma garra de que o próprio Vinicius nunca seria capaz. As duas belezocas finais do Arquivinho são dois microlivros (7x10 cm) de 56 páginas: uma biografia de Vinicius por André Gardel e uma cronologia por Alberto Pucheu, ambos também poetas. A biografia, apesar dos limites de espaço, não deixa de nos espantar pela quantidade de coisas que Vinicius fez na vida, permitindo-se reviravoltas constantes: do catolicismo e do flerte com o fascismo à guinada à esquerda; das várias fases de sua poesia até o mergulho na música popular e as fases também tão diversas de seu trabalho nesta área; da troca da gravata itamaratiana pelas mangas arregaçadas e, destas, às batas hippies; sem falar nos nove casamentos, as mudanças constantes de país, a quase impossibilidade de manter um endereço fixo por mais de um ano - Vinicius era um ser em movimento e ele próprio foi, sozinho, um movimento poético, musical, existencial. Por mais volátil que fosse sua presença, sua influência foi profunda em todos com quem conviveu (influenciava até o jeito de falar das pessoas). Já a cronologia está cheia de pequenas curiosidades (com um trecho de poema ou letra de música diretamente referente a cada entrada). Sabia que ele nasceu (em 1913) Marcus Vinitius Cruz de Mello Moraes e, aos nove anos, em 1922, conseguiu em cartório uma alteração para Vinicius de Moraes? Assim mesmo: Vinicius com c e sem acento e Moraes com e, não i (ele não gostaria de ver seu nome grafado Vinícius de Morais, como o fazem grosseiramente alguns jornais e enciclopédias). E que tal o time de seus diretores favoritos de cinema, que "escalou" em 1947 como quem escala um time de futebol? Chaplin; Griffith, Stroheim, Eisenstein e Pudovkin; Dovchenko, Flaherty, Gance e Vigo; Dreyer e King Vidor (a estranhar, apenas esta formação em 4-4-2, quando o comum na época era o 2-3-5, e a ausência do amigo Orson Welles, cujo Cidadão Kane adorava - mas sua fidelidade ao cinema mudo ainda era total). E quer saber quais eram os "10 mais" de Vinicius no jazz, em lista feita em 1959 para o livro de Jorginho Guinle, Jazz Panorama? Eram estes: Louis Armstrong, Bunk Johnson, Zutty Singleton, Jimmy Noone, Jelly Roll Morton, Ma Rainey, Kid Ory, Jimmy Yancey, George Lewis e Charlie Parker - espantosa, apenas a presença do criador do bebop, Charlie Parker, numa lista radicalmente tradicionalista, composta dos craques de New Orleans pré-1930 (mas duvido que Vinicius pusesse um disco de Parker para tocar). E olhe que, em 1959, ele já era Bossa Nova até a raiz dos cabelos. Falando em Bossa Nova, eis a conclusão a que Vinicius chegou sobre Tom em fins dos anos 60, quando não faltava quem contestasse no Brasil a importância de seu parceiro: "Quem melhor que ele, digam-me? Michel Legrand? Jimmy Webb? Burt Bacharach? John Lennon? Lalo Schiffrin? Henry Mancini? Ennio Moricone? Dmitri Tiomkin? Aqui, ó!". Moderno e eterno, poeta na poesia e na vida, Vinicius vivia cada etapa como se fosse a última (essas frases vão pegar). Numa época (1962), circulava com Pixinguinha para cima e para baixo, inclusive nas rodas de choro em Olaria; em outra (1963), "seqüestrou" sua namorada Nelita de Abreu Rocha (para fugir do namorado desta, que queria acertá-lo), enfiou-a num carro (dirigido por Tom e tendo como "seguranças" Otto Lara Resende e Fernando Sabino) e fugiram para Paris, onde se casaram; ainda em outra (1964-1966), tornou-se colunista de jornal e revista (para pagar as contas), escreveu peças de teatro, traduziu para o francês as legendas de Deus e o Diabo na Terra do Sol (para ser apresentado em Cannes) e colaborou em roteiros de cinema; e, em outra ainda (1979), um ano antes de morrer, leu poemas políticos na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, a convite de, olha só, Luís Inácio da Silva. É quase inacreditável que, com uma produção tão extraordinária e em tantos terrenos, Vinicius tenha morrido comparativamente pobre, sem quase controle algum sobre seus direitos em canções, discos, livros (por desorganização sua e má fé de editores musicais, principalmente no exterior), sempre endividado, com papagaios por vencer e, muitas vezes, duro mesmo. Hoje, a marca VM é uma potência. O Arquivinho do Poeta é o segundo produto da Bem-te-vi, a editora de Vivi Nabuco e Lúcia Almeida Braga. O primeiro saiu há alguns meses: o extraordinário livro Arte do Encontro, com as fotos de Paulo Garcez documentando toda uma época (anos 60-70) da cultura do Rio e para o qual tive o prazer de contribuir com as legendas. A Bem-te-vi pretende continuar com os Arquivinhos, planejando fazer os de Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende. Tudo isto enquanto se prepara para soltar, já agora em dezembro, o monumental Carlos e Mário, as cartas de e para Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, editadas por Lélia Coelho Frota, com 600 páginas e 320 ilustrações. Vinicius gostaria de estar vivendo esta surpreendente fase de recuperação da cultura brasileira. E, de muitas formas, ele está. Um Arquivinho do Poeta. Pasta contendo materiais avulsos de Vinicius de Moraes. Editoria de Lélia Coelho Frota. Bem-te-vi Produções Literárias. Lançamento: dia 4, quarta-feira, na livraria Argumento. Rua Dias Ferreira, 417, Leblon, Rio de Janeiro. Preço: R$ 53,00.

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