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Um sueco em trânsito

Diante de um Brasil sufocante, ele preferiria ser um nórdico de passagem

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Por motivos para lá de óbvios, tenho lembrado insistentemente de Evandro Pequeno, extraordinário personagem a quem, já faz tempo, dediquei meu palmo de conversa hebdomadária. Morto há quase 60 anos, infelizmente não o conheci, mas volta e meia penso nele, nos seus feitos e frases brilhantes, no talento enorme que dilapidava na conversação.

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O grande Pequeno faz parte de minha galeria de seres dos quais, distantes no tempo e no espaço, me chegaram preciosos lampejos verbais. Gente não necessariamente brilhante – como o jornalista Mozart Monteiro, situado a anos-luz da cintilação de um Evandro Pequeno, ainda assim capaz de nos deixar ao menos uma pérola, quem sabe involuntária. Responsável por uma coluna intitulada O Observador Político, houve um momento em que Mozart, enojado com a cena nacional, encerrou assim seu comentário: “Se o Brasil continuar no rumo em que vai, este observador deixará de observá-lo”. 

Foi um pouco o que fez, embora não por escrito, o jornalista, tradutor, músico e funcionário público Evandro Pequeno, cearense acariocado, no dia em que resolveu demitir-se da condição de brasileiro e refugiar-se numa identidade a seu ver à prova das mazelas deste nosso canto de mundo. 

Quem conta é Rubem Braga: “Os problemas do Brasil, as mesquinharias de nossa vida pública, a miséria fundamental de nosso povo, todas essas coisas de repente cansam e desanimam uma pessoa sensível. Evandro Pequeno encontrou uma solução: ‘Eu sou um sueco em trânsito’. Não saber de nada, não entender uma palavra do que estão dizendo e escrevendo por aí, não ter nada a ver com nada, não se sentir responsável por nada (muito menos pela famosa dívida externa), não ter vergonha de nada: ser um sueco em trânsito”.

Ainda bem que havia, ao redor de Evandro, pequeno apenas no sobrenome e na estatura física – media 1,65m –, ouvidos tão embasbacados quanto atentos para recorrer fagulhas de sua verve perdulária, permitindo assim que chegassem até nós. Mesmo caso, aliás, de seu amigo Jayme Ovalle, outro que esmerilhou talento e arte na conversação, sem a preocupação de fazê-la descer ao papel. Se bem que de Ovalle nos chegaram criações musicais como Azulão, meia dúzia de poemas e uma engenhosa classificação dos seres humanos em cinco categorias, a Nova Gnomonia, assim batizada por Manuel Bandeira, a quem devemos o imenso favor de perenizar o que ouviu do parceiro numa conversa de café. 

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Se de Evandro Pequeno nos veio bem menos coisa, foi porque ele, amigo de Guignard, Di Cavalcanti, Murilo Mendes, Ismael Nery, Aníbal Machado, Dante Milano e Gustavo Corção, entre muitos outros, se dava melhor no papo com pouca gente (preferia o tête-à-tête) do que com as rodas amplas e embevecidas em que Ovalle se esbaldava. Não sou homem de plenário, sou homem de comissão, se escusava ele, surrupiando linguajar de deputado. 

Para sorte nossa, não faltou quem preservasse um pouco do ouro em pó da conversação deste homem erudito, intelectual sem obra, além de instrumentista exímio no piano, no violoncelo, no oboé e no fagote, com passagem pela Orquestra Sinfônica Brasileira.  Rachel de Queiroz, por exemplo, de quem foi muito próximo, falou da hilariante mania que tinha Evandro de dar tradução literal a nomes próprios. Na sua boca, William Shakespeare virou Guilherme Balança-as-Peras. Divertiu Rachel também com o relato dos tempos em que ia às putas, como se dizia, embora com finanças aflitivamente rarefeitas: “Eu só tinha dinheiro para pagar uma tão feia”, contou Evandro, “mas tão feia que, para me inspirar, precisava olhar para as minhas próprias pernas.” 

Suas anedotas, escreveu Mário Pedrosa, “acabavam fazendo a volta ao Rio e ao Brasil, para ir ter de novo a ele, com mil variações”. Já Murilo Mendes registrou o talento histriônico de um “grande ator sem palco”, dotado de “mímica poderosa e linguagem inventiva”. A galeria das “invenções” de Evandro Pequeno incluiu o piano com sotaque português, cuja som reproduzia com a boca, a eleição para presidentes depostos e uma fórmula para envenenar membros da Academia de Letras com verbos e adjetivos extravagantes.

Poliglota apoiado em notáveis conhecimentos de filologia, Evandro falava inglês, espanhol, francês, russo e alemão, além do idioma nórdico que lhe permitiria estar muito à vontade se assumisse a condição de sueco em trânsito. Não fosse o infarto que o levou tão cedo, aos 62, provavelmente teria dominado também o japonês e o grego, pedreiras que vinha desbastando. “A gente tinha a impressão de que para ele não existira a confusão das línguas”, escreveu Corção na sua morte. 

A conversão em sueco em trânsito não era a única saída a que Evandro recorria quando lhe baixava a náusea cívica. Chegou a propor a adoção do “bananismo”, regime em que os brasileiros, renunciando a qualquer ação – pois quanto menos se age, menos se erra, explicava –, passariam a viver na rede, comendo banana. Bolou também uma Liga Contra o Brasil, embalada pelo sonho de ver o país invadido pelo “exército vermelho” do Paraguai.

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Como estaria Evandro Pequeno reagindo, me pergunto, se condenado a dividir conosco os hematomas de uma baita ressaca pós-eleitoral?

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