Um romance de deformação - Resenhas

PUBLICIDADE

Por André de Leones
Atualização:

Originalmente publicado em 1977, O Professor do Desejo é o nono livro de ficção do recém-aposentado escritor americano Philip Roth (1933) e o segundo protagonizado pelo professor de literatura David Kepesh (o primeiro é O Seio, de 1972, e o último, O Animal Agonizante, de 2001). É uma espécie de romance de formação, ou melhor, deformação. Há uma frase atribuída ao escritor John Barth que talvez sirva para descrevê-lo: "O autoconhecimento é sempre uma má notícia".No decorrer da narrativa, Kepesh fala sobre sua infância num hotel administrado pelos pais, a vida como estudante universitário e os primeiros anos de sua carreira acadêmica. O descompasso entre ele e o mundo é ilustrado pela forma como se relaciona com uma série de pessoas disfuncionais em sua "busca por autocompreensão". A primeira delas é o mestre de cerimônias do hotel, Herbie, cujo "exibicionismo desavergonhado" e sua capacidade para simular não só "a panóplia de sons (...) com que a humanidade emite seus gases, mas também uma diarreia aguda" fascinam o pequeno Kepesh.Depois, na universidade, ele faz amizade com um estudante de filosofia. Surpreende-se ao descobrir que o amigo seria, segundo as más línguas do câmpus, um "homossexual praticante". Mas, justamente porque a ideia o assusta, não consegue se afastar, pois se identifica com o ser marginalizado que tem diante de si. Ao mesmo tempo, no que diz respeito às garotas, Kepesh não se mostra capaz de conciliar suas investidas com as expectativas delas, frustrando-se continuamente.Ele flerta com alguma libertação ao ganhar uma bolsa Fullbright e viver em Londres por um ano, quando passa a se relacionar com duas estudantes suecas. O problema é que uma delas não estava necessariamente interessada nas brincadeiras a três, às quais teria se submetido para agradar ao parceiro, e volta para Estocolmo com o coração partido e cogitando se matar. Kepesh vê-se assolado pela culpa, e é tentando expiá-la que se atira numa relação sexualmente desenfreada com a sueca restante. Há sempre uma nota amarga, contudo. O envolvimento deles é um tanto paradoxal, como se animado por uma carnalidade ausente. Ele nunca parece estar, de fato, presente.De volta aos EUA, ao mesmo tempo em que dá início à sua carreira de professor, Kepesh conhece aquela com quem se casará, Helen. A essa altura (um quarto do romance), depois de tudo por que passou, nosso herói tem uma noção mais ou menos clara da própria incompletude. Mesmo assim, ele se permite embarcar num casamento com uma mulher que, em vez de dirimir sua inadequação, acaba por alimentá-la: "Desde cedo fui cativado pela beleza física nas mulheres, mas Helen não apenas me intriga e excita: sinto-me também alarmado e muito, muito inseguro, totalmente subjugado pela autoridade com que ela assume, confirma e torna única sua beleza, embora ao mesmo tempo suspeite das prerrogativas, da importância, que tal beleza lhe confere em sua própria imaginação". Como de hábito, ele vê uma luz vermelha piscando em algum lugar, mas opta por ir em frente. O casamento é uma bomba-relógio.Quando afinal se livra de Helen, após desdobramentos inacreditáveis que incluem uma viagem a uma prisão de Hong Kong, e depois de passar por um processo excruciante de terapia, Kepesh conhece uma mulher sensata, tranquila, capaz de lhe oferecer uma relação equilibrada. Não por acaso, ela se chama Claire. Quando escreveu o livro, Roth já estava envolvido com a atriz britânica Claire Bloom (a quem O Professor do Desejo é dedicado). O fato de o relacionamento deles, que se prolongou por quase duas décadas, ter resultado desastroso ecoa, inadvertidamente, a situação tragicômica e o impasse que têm lugar na parte final do romance em questão. É como se a vida respondesse à ficção.Roth exibe a maestria habitual no modo como arma essas camas de gato das quais, ironicamente, seu personagem sempre tem alguma consciência prévia. É como se o autoconhecimento, mais do que uma má notícia, encerrasse também uma compulsão pela autossabotagem. Como "aprender a viver sem o que desapareceu"?, ele se pergunta. Kepesh parece estar atolado entre a exuberância de Mickey Sabbath, protagonista de O Teatro de Sabbath, e a culpa de Alexander Portnoy, de, claro, O Complexo de Portnoy. A exemplo dessas e de outras criações do autor, o maior problema de David Kepesh é que ele simplesmente não sabe o que fazer de si e, por decorrência, dos outros. Ele está sozinho como o restante de nós.* É ESCRITOR,  AUTOR DE DENTES NEGROS (ROCCO), TERRA DE CASAS VAZIAS (MESMA EDITORA,  NO PRELO)O PROFESSOR DO DESEJOAutor: Philip RothTradução: Jorio DausterEditora: Companhia das Letras(256 págs., R$ 39,50)ANDRÉ DE LEONES

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.