Entre os autores de língua espanhola, Miguel de Cervantes (1547-1616) é aquele que circula há mais tempo em língua portuguesa: as primeiras traduções datam do final do século 18. Sua obra maior, Dom Quixote de La Mancha, foi qualificada pelo argentino Jorge Luis Borges como “o último livro de cavalaria e o primeiro romance psicológico das letras ocidentais”. Mas além de engendrar o romance moderno, Cervantes visitou ainda outros gêneros menores, como as narrativas breves, que deram origem às suas Novelas Exemplares.
Publicadas pela primeira vez em 1613, elas traziam em língua espanhola a experiência da narrativa curta, semelhante ao que fizera Bocaccio em seu Decameron. Um dos prazeres oferecidos pelas novelas de Cervantes é seu suposto caráter exemplar, que é a todo tempo transgredido pelos personagens; ainda assim, tal preocupação contrasta fortemente com o narrador do Quixote, mais ambíguo e menos preocupado com a crítica dos costumes. Outra característica de tais novelas é elas poderem ser lidas separadamente, mas também dialogarem entre si, produzindo significações surpreendentes.
O Brasil, infelizmente, tem sido pouco generoso com esta possibilidade de diálogo entre as novelas, pois elas nunca estiveram reunidas em um só livro. A tradução mais antiga, dos anos 70, a cargo de Darly Nicolana Scornsienchi, foi publicada por três diferentes editoras ao longo das décadas e, inexplicavelmente, suprimia 3 das 12 novelas originais. Em 2012, finalmente Nylcéa Thereza de S. Pedra traduziu para a Arte & Letra a íntegra dos textos, mas publicou-os em 3 volumes separados. A presente edição, da Editora Unicamp, traz apenas o pouco conhecido Colóquio dos Cães.
Embora não seja possível datar a escrita desta novela, pode-se pensar num narrador em construção. O argumento do texto é simples: como indica o título brasileiro, estamos diante de um “debate de cachorros”, aos quais foi dado o dom da fala; Berganza e Cipião se valem da habilidade imprevista para contar a própria vida e agruras com os diferentes donos. É o procedimento depois aproveitado por Machado de Assis, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas: falar da sociedade estando fora dela, e assim satirizá-la dela com ampla liberdade.
Os tradutores optaram por levar o leitor brasileiro ao universo narrativo do século 17, recriado os diálogos com um português arcaizante. O texto fica um pouco árduo assim, mas o sabor da caudalosa prosa do autor permanece. As perdas, sabemos, e Cervantes já o sabia, são inevitáveis. Como diz o cachorro Cipião: “Poucas vezes, ou nenhuma, se cumpre com a ambição sem dano de terceiro”.
O leitor é lançado sozinho nesta aventura, sem o auxílio de notas ou prefácios. Tem tão somente o texto de Cervantes em português e espanhol, em espelho; falta a discussão quanto ao lugar desta novela na trajetória do autor e também no conjunto das demais novelas. Para tais informações, existe a esclarecedora dissertação de mestrado de Silvia Massimini, de 2006 (disponível online no banco de Teses da USP), que oferece também tradução desta e de outra novela exemplar – O Casamento Enganoso – com uma generosa oferta de notas de leitura e comentários. Massimini mostra a indissociabilidade entre os dois textos. Lê-los juntos ressalta ainda mais o caráter metanarrativo da novela: enquanto um cachorro narra, o outro discute os procedimentos narrativos do colega e faz intervenções filosóficas sobre a matéria tratada. Tem-se aí a construção daquele que viria a ser o autor de Quixote.
WILSON ALVES-BEZERRA É PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE LETRAS DA UFSCAR E AUTOR DE DA CLÍNICA DO DESEJO A SUA ESCRITA
O COLÓQUIO DOS CÃESAutor: Miguel de CervantesTradução: Walter Carlos Costa e Pablo Cardelino SotoEditora: Unicamp (184 págs., R$ 26)