Crítica: João Marcos Coelho
Tenho uma boa e algumas más notícias sobre o recital da contralto Nathalie Stutzmann anteontem na Sala São Paulo. Pela ordem: eliminou-se o letreiro em branco sobre branco, que ninguém conseguia ler. Distribuiu-se um folheto de 8 páginas com o material básico para o público acompanhar os textos originais e as traduções das canções. Apesar do público apenas razoável, algumas pessoas ficaram sem programa.
Agora as ruins: meia hora antes do recital, a diva decidiu mudar sua colocação no palco. A sala já estava dividida ao meio pelos enormes panos brancos, como de costume. Mas Nathalie e a pianista postaram-se de frente para o coro, portanto de costas para o público. Dois ridículos monitores mostravam imagens delas aos desolados espectadores. Quem assistiu à primeira parte na plateia, como eu, foi imensamente prejudicado. A poderosa voz de Nathalie projetava-se inteira em direção ao coro; a nós, restavam apenas fiapos distorcidos. Pena, mas não foi possível curtir a imensa beleza dos sete lieder de Schubert. Fiquei até com a impressão errada de que sua voz não ficava à vontade nos arabescos mais agudos das melodias de Schubert. Mesmo com Nathalie de costas e a voz chegando distorcida, deu para capturar um pouco da sua magia na inicial "Na Primavera" e na conhecidíssima "A Truta".
Outro erro, desta vez de repertório, foi incluir, a título de tributo a Wagner, quatro canções descartáveis assinadas por aquele que viria a ser um gênio, mas àquela altura era só um jovem de 26 anos perseguindo o sucesso a todo custo em Paris. A tal ponto que enfiou praticamente toda a Marselhesa no acompanhamento do piano em "Os Dois Granadeiros", sobre versos de Heine traduzidos para o francês, só para sensibilizá-los, obviamente num baixo lance marqueteiro. Teria sido mais inteligente ouvi-la em Schumann, por exemplo. Em todo caso, a ótima Inger Södergren salvou o tributo tocando a "morte de amor" do "Tristão" em transcrição para piano solo de Franz Liszt.
Na segunda parte, todos aboletaram-se no coro; só alguns gatos pingados permaneceram na plateia. Aí sim, começou de fato para muitos o recital, dedicado dali até o fim à mélodie. Foi assim que os franceses qualificaram suas canções aculturadas a partir da matriz alemã de Schubert. As quatro belas mélodies de Charles Gounod justificam o raciocínio de Ravel, atribuindo-lhe a paternidade do afrancesamento do gênero: Gounod "reencontrou o segredo da sensualidade harmônica perdida desde os cravistas". Preciosas, particularmente, são "Donne-moi cette fleur", predecessora da muito mais famosa La Fleur Que Tu m'Avais Jetée de Bizet; e Le Vallon, de 1842. Ambas receberam leitura notável de Nathalie, capaz de inflexões sutis na entonação.
O melhor, entretanto, estava por vir, com as quatro mélodies de Debussy. Canções de juventude, compostas entre 1880 e 1891, mas neste caso excepcionais. Em Os Sinos, de 1883, o piano reproduz sua sonoridade e o compositor emenda dois versos numa única e longa frase musical, provocando um efeito de declamação lindamente reproduzido por Nathalie. No extra, À Chloris, uma das mais conhecidas mélodies de todos os tempos, de tinturas bachianas no acompanhamento, composta pelo andrógino dândi franco-venezuelano Reynaldo Hahn, em comovente performance da diva. No saldo geral, uma passagem deslumbrante por São Paulo de Nathalie, uma das maiores cantoras do nosso tempo.
JJJJ ÓTIMO
JJJJJ EXCELENTE