PUBLICIDADE

Um Raskolnikov 'camusiano' em Cabul

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Atiq Rahimi estreou na literatura com um romance chamado Terra e Cinzas (1996), que depois virou filme dirigido por ele, assim como Pedra-de-Paciência (Syngué Sabour), que lhe garantiu o prêmio Goncourt em 2008 - e cuja adaptação foi indicada para disputar o Oscar de melhor filme estrangeiro. No comovente Terra e Cinzas, Rahimi retrata o Afeganistão por meio de três gerações: o avô, que representa o passado, a tradição afegã, o filho (o presente), que trabalha numa mina, e o neto (o futuro), surdo por causa dos bombardeios durante a invasão soviética. Rahimi, 50 anos, pertencente à geração intermediária - dividida entre os mujahidin e os comunistas -, não teria comunicação nem com o passado (o avô) nem com o futuro (o filho).

 

PUBLICIDADE

Essa história, de certo modo, é retomada em outro patamar alegórico no recente Maldito Seja Dostoiévski. Ele volta aos anos 1990, época da guerra civil no Afeganistão, para questionar o sentido de justiça num país acossado pela ascensão do grupo extremista Taleban, que garantiu ao Afeganistão o título de maior produtor de refugiados do mundo. Morando em Paris, Rahimi deixou a zona de desconforto para falar dela nos livros, sendo o mais recente sua releitura de Crime e Castigo.

 

Maldito Seja Dostoiévski, seu quarto livro, é uma experiência singular na carreira do autor e cineasta: nele, a escritura é de uma precisão flaubertiana, mas o cenário parece propositalmente fora de foco, para garantir que o crime do Raskólnikov afegão, Rassul, seja envolto pela névoa política dominante em Cabul. É a justiça no país da injustiça que interessa a Rahimi, como diz em entrevista ao Sabático. Para Rassul, que comete um crime, não há volta, reparação, só culpa. Mas como poderia ele pagar por seu crime num Afeganistão refratário à justiça de outros países e dominado pela sharia, o código moral e religioso islâmico?

 

Rahimi nasceu em Cabul, saiu do Afeganistão em 1984, viveu no Paquistão por um ano e pediu asilo político à França em 1985. Como ele, seu personagem Rassul deixou o Afeganistão na mesma época, estudando na Rússia entre 1986 e 1989. Bibliotecário da Universidade de Cabul, ele guarda livros russos em casa e por isso é colocado sob suspeita, apesar de não ser comunista. Rassul será perseguido não por ter assassinado uma velha cafetina, mas por uma ideologia que nem mesmo professa, ao contrário do pai, simpático a ela após a invasão soviética, em 1978. Qualquer semelhança com o Mersault de Camus - condenado não por matar um árabe, mas por se mostrar indiferente à morte da mãe - não é mera coincidência, mas uma referência proposital, garante Rahimi. E uma alegoria pessoal: como Rassul, seu irmão também estudou na Rússia no mesmo período, acabou se envolvendo com os soviéticos durante a invasão do Afeganistão e morreu em 1990.

 

Rahimi virou escritor para ser o porta-voz de quem repousa no silêncio eterno, como o irmão. Em vários momentos do livro, Rassul, embora vivo, perde igualmente a voz, não consegue exprimir seu desespero diante da culpa. Devorado pelo remorso e pela afasia, preso pela obsessão de encontrar um juiz justo, Rassul tem como único interlocutor o narrador do livro - escrito em francês, e não na língua materna de Rahimi, que o impediria de usar alguns termos em dari (persa) por autocensura. "A noção do pecado original, por exemplo, não existe no Islã, pois se nasce inocente e não se herda uma mácula hereditária, ou seja, não é possível responder pelos erros dos outros", lembra o escritor, para perguntar em seguida: "Então, qual é a noção de culpa numa guerra civil?".

 

Com Maldito Seja Dostoiévski, Rahimi dá por encerrado o ciclo de romances sobre o Afeganistão. Considera que está na hora de buscar novos temas e cenários. E não descarta recorrer à própria literatura, como o faz agora. Sobre Murakami, que recorreu igualmente ao cânone literário, diz o escritor afegão: "Eu o adoro e acho que o fato de recorrer a Dostoiévski, Kafka ou Orwell apenas reforça a observação de Barthes, a de que toda a história literária é tiranicamente centrada na ideia do autor, quando o que nós, Murakami e eu, acreditamos é na impessoalidade". Rahimi, claro, não está decretando a morte do autor, mas dizendo que a tradição, o cânone, deve ser usado como referência para sabotar o passado, pois o scriptor moderno, como disse Barthes, nasce ao mesmo tempo que seu texto. Rahimi, também cineasta, acha que o mesmo acontece ao fazer um filme. Aliás, ficou surpreso com a indicação de Pedra-de-Paciência para o Oscar. Mais pelo Afeganistão e pelo tema - uma mulher que vela o marido com uma bala alojada na cabeça - do que pelo autor.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.