Um quebra-cabeça lírico

Com dança, teatro e multimídia, ópera Sonntag, de Stockhausen, do ciclo Licht, agora estreia completa

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Por William Robin
Atualização:

Depois de uma estreia triunfal na Filarmônica de Nova York, em 1971, é o que narra a história, o compositor alemão Karlheinz Stockhausen foi procurado por uma estranha figura. Usando um casaco de pele e uma bengala e segurando um grosso livro, o homem se destacava em meio aos hippies e boêmios que tinha ido ouvir Stockhausen dirigindo o seu Hymnen. O estranho ofereceu ao compositor o pesado tomo que trazia embaixo do braço, convidando Stockhausen para se tornar "o ministro da transmissão sonora".E ele foi. O amálgama quase cristão de ciência e religião no The Urantia Book - texto que Stockhausen recebeu do mágico personagem - tornou-se a base espiritual de um enorme ciclo de óperas, intitulado Licht (Luz). Escrito de 1977 a 2003, Licht supera até mesmo o ciclo do Anel de Richard Wagner, abrangendo sete óperas completas, num total de 29 horas.Stockhausen morreu em 2007, sem ver Licht ser encenado na sua integralidade. Mas sua obra encontrou nova vida na Ópera de Colônia, que nas últimas semanas encenou a peça culminante do ciclo, Sonntag (Domingo). Para abrigar a produção, a companhia construiu dois teatros dentro da cavernosa Staatenhaus am Rheinpark, uma ala do centro de exposições da cidade.O ensemble local MusikFabrik juntou forças com a equipe catalã La Fura dels Baus e vários antigos colaboradores de Stockhausen, incluindo o flautista e especialista em eletrônica Kathink Pasveer e o maestro Peter Rundel. Embora várias cenas de Sonntag já tenham sido apresentadas em concertos, as encenações em Colônia constituíram a estreia da ópera completa. A longa e difícil jornada de Licht transcorreu ao mesmo tempo em que a fama de Stockhausen decrescia: depois de um tempo, até mesmo os aficionados da música nova se cansaram da sua devoção excepcional à teologia opaca das óperas. Stockhausen afastou-se da vida pública e parece que perdeu o contato com a realidade, o que se confirmou quando da resposta equivocada aos eventos do 11 de Setembro, quando ele invocou o vilão de Licht, e chamou os ataques de uma obra-prima luciferiana, provocando um enorme escândalo.Mas Stockhausen foi um titã musical no período após a 2.ª Guerra Mundial, fazendo parte de uma geração artística fanaticamente comprometida com a inovação. Sua música se baseava em processos matemáticos.Em meados dos anos 50, começou a direcionar seus processos científicos para um plano espiritual e abraçou uma pluralidade de religiões. Na década de 60, compôs obras abstratas, com performances no estilo de John Cage, tornando-se um herói cultuado tanto por acadêmicos como por lendas do rock (sua imagem aparece numa montagem fotográfica na capa do Sgt. Pepper"s Lonely Hearts Club Band). Mais para o fim da década, passou a escrever peças teatrais esotéricas, predecessoras de Licht.Embora Stockhausen a tenha chamado de ópera, Licht aproxima-se mais de uma peça de mistério medieval ou do drama sagrado do Parsifal de Wagner. Basicamente sem uma trama, o ciclo gira em torno de três arquétipos do The Urantia Book - o anjo Miguel dos cristãos, sua rebelde contraparte Lúcifer, e a mãe de todos, Eva. Os papéis são interpretados por cantores, dançarinos e instrumentistas. Ao escrever seus libretos, Stockhausen inventou uma mitologia que congrega múltiplas tradições culturais. "A morte é apenas o início de uma carreira infindável de aventura, uma viagem eterna de descobertas", afirma o The Urantia Book. O ministro da transmissão sonora desapareceu. Fica para os seus seguidores a conclusão da sua viagem utópica. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINOQUEM ÉKARLHEINZ STOCKHAUSENCOMPOSITOR ALEMÃONascido em Mödrath, em 22 de agosto de 1928, e ex-aluno de Olivier Messiaen, ele se tornou sinônimo da música de vanguarda. Um dos mais polêmicos criadores da segunda metade do século 20, também foi pioneiro da música eletrônica, com composições como Cântico dos Adolescentes, dos anos 1950. Morreu em 5 de dezembro de 2007.

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