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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Um ponto de vista

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Atualização:

Leio que a poluição, na Baía de Guanabara, é um desafio olímpico. Examinada por técnicos, há a unanimidade que despoluir 80% da baía até o começo dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro de 2016, seria uma tarefa para o Super-homem ou talvez o Capitão Marvel, conforme me diriam Fernando e Romero, os meus finados irmãos gêmeos dos cinco irmãos e uma irmã dos quais eu tive o privilégio e a honra psicologicamente ambígua de ter sido "o mais velho".... que quando um de nós elegíamos um super-herói alguém logo levantava outro, armando uma acalorada discussão sobre quem seria o mais poderoso... ramos crianças, mas, diferentemente dos governantes, tínhamos um vasto senso de realidade. Jamais iriamos convocar o Fantasma Voador, o Flash Gordon, o Batman ou o Dick Tracy para disputar com o Super-homem, o Tocha Humana ou o Capitão Marvel, por que os primeiros eram seres humanos excepcionais, ao passo que os segundos possuíam poderes extra-humanos. Seriam como os santos ou os deuses do Olimpo, aquela montanha que, conforme invoca a reportagem de Ludmila de Lima publicada no Globo em 16/2, será representada pelo Pão de Açúcar e Corcovado nos jogos de 2016. Nossa consternação era que os santos somente atuavam em doenças e junto aos mortos, ao passo que os heróis que chegavam dos Estados Unidos, tocados à cultura de massa e alta urbanização, com suas terríveis questões e dilemas, agiam no mundo. Estavam mais próximos dos deuses gregos do que do nosso catolicismo, cuja orientação era para o outro mundo. Eu suspeito que acreditávamos mais no Super-homem, que residia em Metrópolis, e, na pele trivial de Clark Kent, era jornalista do Planeta Diário, do que em Deus.Mas voltando à Baía de Guanabara, compreendo o dilema prático olímpico: como despoluir 80% em dois anos, quando se sabe que ela é premiada com 60% de todos os nojentos esgotos que a cercam - uma bagatela de 6 mil litros de porcaria a cada segundo! Convenhamos que essa é a melhor forma de matar a mais bela baía do mundo. Um lado meu insiste que isso é obra das inúmeras circunstâncias da modernidade e que tais acidentes têm ocorrido em todos os lugares. Um outro, mais democrático e muito menos brasileiro, diz que a Baía de Guanabara é mais um exemplo de como temos nos adaptado ao individualismo, ao mercado, ao voto direto, à mídia, ao crescimento das cidades, ao nosso capitalismo monopolizador, rentista, semiestatal e hierarquizado que privatiza ganhos e socializa responsabilidades e perdas. Tudo isso pariu um sistema político-moral absolutamente antiolímpico. Decididamente contra um planejamento fora dos quadros das utopias populescas de direita e de esquerda. O que vamos ter após a Copa, será autoconsciência devastadora da nossa incapacidade de prevenir em vez de remediar. Essa máxima infantil que serve de lema para o Super-homem que, com sua visão de raio X, prendia os bandidos antes da ponte ser dinamitada.Temo que os super-heróis e os santos fazem tudo, menos nos salvar de nós mesmos. E a eleição que vir logo após a Copa vai certamente comprovar a nossa compulsão para escolher o pior, o mais cínico, o mais perverso e o mais capaz de produzir uma destruição silenciosa, sutil, malandra, feita sem querer e por "gente boa" com a qual compartilhamos uma "Ética de Condescendência" que é parte fundamental do nosso inabalável elitismo. Escrevo sobre a baía porque goste de acusar, mas porque nasci e - apesar de tudo - permaneci em Niterói. Uma Niterói cuja vocação marginal de "cidade dormitório" escondia dos dorminhocos cariocas paisagens deslumbrantes que experimentei quando abri os olhos para as praias das Flechas e da Boa Viajem, onde meus irmão e eu pescávamos em suas águas - acreditem-me - transparentes; e olhávamos as cavernas da encosta da Boa Viagem (os sugestivos Buraco do Adão e da Eva), como locais onde as fantasias viravam areia. Ali não havia tesouros de Ali Babá. E hoje não há nenhum herói ou deus para transformar o vergonhoso sujo da Guanabara no limpo capaz de honrar a sagrada tradição grega dos Jogos Olímpicos. O que seria um sonho vai virar pesadelo. Mas como o mundo é uma bola, lembro uma velha piada. Os cariocas dizem que o melhor de Niterói é a vista do Rio. A réplica dos niteroienses é generosa. Os cariocas estão certos: o melhor do Rio é exatamente a paisagem. Se Niterói não é uma cidade, mas - como aprendi com Valter Lima Jr. - um ponto de vista, daqui há uma visão do Rio com suas particularidades e seu senso de humor e seu carnavalismo de corte, com esperança. Afinal, não podemos continuar acasalados por uma ponte engarrafada e pelas águas de uma sentina. Algo olímpico deve ser feito urgentemente. Com a palavra os que mandam e os que querem mandar.

Opinião por Roberto Damatta
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