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Um poeta no cardápio

Por HUMBERTO WERNECK
Atualização:

Veio de tudo na enxurrada de pedidos quando, meio século atrás, a revista Claudia se dispôs a realizar sonhos das leitoras. De um curso de inglês a uma indicação de como amparar as mães solteiras, passando por prótese de braço para uma criança de 8 anos, ou 3 minutos ao telefone com parentes nos Estados Unidos, papo que então custava uma fortuna. Não faltou, claro, quem pleiteasse as indispensáveis trivialidades com que sonham as noivas desde que a primeira delas, rendida a um pitecantropus mais que nunca erectus, encarou a tarefa de mobiliar a caverna conjugal. A todas, casadoiras ou não, a revista acenou com ajuda, avisando que daria "preferência aos casos mais tristes, aos pedidos mais originais, e que obedeçam principalmente a uma das normas já anunciadas: clareza de exposição".A carta de Thereza Oliveira da Silva, 18 anos de idade, carioca de Brás de Pina, reunia todos esses requisitos. Formulado com tosca limpidez, seu "devaneio" vislumbrava uma recepção de casamento em que houvesse muitos convidados e "garções uniformizados". Ao lado do noivo, José Francisco de Sousa Leite, Thereza presidiria "à mesa de honra". Na hora de partir o bolo, ela experimentaria a "ventura suprema" de ver adiantar-se (quesito Originalidade) um senhor, ninguém menos que o poeta Paulo Mendes Campos, cronista da Claudia, o qual lhe traria como presente de bodas "um discurso encantador".A partir da linha seguinte, porém, a carta goteja melancolia e passa a merecer 10 no quesito Tristeza. Dissipa-se "a nuvem de ilusão" que por um instante pairara sobre os cabelos cacheados da noivinha suburbana, e em seu lugar se reinstala "a realidade sombria e sem poesia". No dia do casório, 11 de julho, não haveria convidados, garções, poeta, discurso, festa, nada, pois os pais não tinham com que bancar o mais vasqueiro rega-bofes. À desconsolada Thereza só restava pedir ao pessoal que pensasse nela e lhe desejasse felicidades.Não seja por isso, reagiu Claudia, exclamando em duas colunas e letras alentadas: "O seu casamento vai ser lindo, Thereza!". E foi. Convidados, garçons, doces, salgadinhos, rum nacional porém potável, um grande bolo colorido, teve tudo isso na casinha em Brás de Pina, e mais Paulo Mendes Campos, que se abalou da Zona Sul com a inglesa Joan, sua mulher. A reportagem com que a revista registrou o bródio não esclarece se o poeta, homem reservado, chegou a proferir ao pé da "mesa de honra" o discurso imaginado por Thereza. O que se sabe é que sacou do bolso uma crônica datilografada, a qual, embora sem nada de especialmente lacrimogêneo, levou a noiva a declarar, entre soluços: agora tinha uma história "tão bonita quanto a de Cinderela", mas verdadeira, para contar aos filhos que viriam. O acontecimento não se confinou às páginas da Claudia. No dia seguinte, Otto Lara Resende comentou em carta a Fernando Sabino, amigo comum que então vivia em Londres: "Só vendo a carinha lambida do PMC na foto que saiu hoje no Jornal do Brasil". E contou: "O Paulinho Bilosca foi a um casamento no subúrbio, uma mocinha pobre pediu para ter casamento de arromba com o Paulinho de orador". Na "Crônica para Thereza", publicada na revista e ainda à espera de livro, o escritor pede desculpas por não saber fazer discursos, embora no colégio tenha sido orador oficial do grêmio literário. "Na vida cotidiana", escreve ele, "desgastada pela repetição, uma noiva significa apenas mais uma noiva. Assim, com surpresa, foi Thereza que me deu um presente: o de fazer com que me emocionasse de novo com a imagem da Moça Noiva, ou seja, a imagem da recriação da esperança na vida; inesperadamente, Thereza me fez a dádiva de recriar em mim as minhas esperanças." Quanto a este cronista, deu vontade nele de saber se há, em Brás de Pina ou qualquer outro canto, um casal que sonha festejar em 11 de julho próximo, com ou sem poesia, as suas bodas de ouro. Ou seria mais prudente deixar quieto?

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