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Um pensamento no ritmo do jazz

'Music Makes Me', de Todd Decker, inova na tese de que é possível conciliar entretenimento e criação

Por João Marcos Coelho
Atualização:

Um voo rasante sobre a produção ensaística a respeito das "performing arts", especialmente a música, nos Estados Unidos na última década deixa a impressão de que finalmente, depois da histórica emulação da arte e da cultura europeia, o universo acadêmico começa a assumir uma atitude menos dependente. É evidente que os próprios criadores já se alforriaram há muito. A reflexão quase sempre vem a reboque do ato criador. Dois são os vetores destes gritos de libertação. Primeiro, a aceitação orgulhosa de que as músicas norte-americanas são privilegiadas na manipulação inteligente da corda bamba entre as exigências do mercado e a criação propriamente dita. Os exemplos mais notórios aconteceram nas décadas de ouro da música popular no século 20, grosso modo, entre 1920 e 1960: os musicais da Broadway e de Hollywood nos quais brilharam nomes como Fred Astaire, o jazz tão popular que produzia kings como Benny Goodman, Duke Ellington e Count Basie, sem esquecer os compositores que encapsulavam em 3 ou 4 minutos gemas dignas de um lied de Schubert, como por exemplo Irving Berlin, George Gershwin e Cole Porter. As monografias dos últimos anos têm funcionado como colchões conceituais que justificam esteticamente o caráter único destas artes que vivem de mãos dadas com o mercado e ainda assim escapam da banalidade. O livro de Robin Kelley sobre Thelonious Monk, o sumo sacerdote do bebop (The Life and Times of an American Original) mostra, para espanto geral, que Monk estudou música clássica a sério, adorava Bela Bartók e, apesar de ser bipolar, compôs uma persona para consumo do grande público. Com uma só tacada, desfez os mitos do gênio que chegou pronto e do maluco pirado. Harvey G. Cohen, em Ellington's America, enfoca as conquistas e contribuições do Duke em mais de meio século no contexto das realidades pragmáticas que enfrentou, enquanto tocava uma variada e rara carreira no instável mundo da música popular. Ao contrário do exotismo de Monk, Ellington usou a filosofia do uma-no-cravo-outra-na-ferradura: alternava músicas populares com suítes sofisticadas como Such Sweet Thunder, baseada em peças de Shakespeare. Possivelmente o exemplo mais atrevido desta tendência é Music Makes Me, de Todd Decker, professor de música na Universidade de Washington em St. Louis. O livro acaba de ser lançado nos EUA e é um primor de refinamento. Inova na consolidação da tese ampla de que é possível conciliar entretenimento e criação de qualidade nas artes massificadas porque parte de um artista "comercial" e mostra seu DNA jazzístico, que transplantou para sua arte que atingiu milhões no mundo inteiro. Seu objeto de estudo é Fred Astaire (1899-1987), o sensacional tap dancer (sapateado), bailarino e coreógrafo, parceiro imortal de Ginger Rogers e formidável cantor da era dos musicais de Hollywood. Reinou absoluto entre os anos 30 e os 60. Decker, porém, não quis escrever mais uma biografia. Mergulhou na documentação da época, nos roteiros dos filmes às anotações da produção nos sets de filmagem, examinou reportagens, entrevistas, críticas jornalísticas. Pesquisou em profundidade as relações de Astaire com os músicos de jazz. Enfim, "não quis contar histórias, mas encontrar evidências". Quais evidências? Direto ao ponto: "Fred Astaire pensa em termos jazzísticos". Mais: coloca-o como um dos que sobreviveram dignamente nas décadas subsequentes à avalanche do rock a partir de meados dos anos 50, ao lado de outras grandes figuras da era do swing no jazz, como Count Basie, Lionel Hampton, Buddy Rich e Frank Sinatra. "Este estudo", esclarece Decker, "coloca Astaire na companhia destes eminentes músicos, grandes criadores jazzísticos que contribuíram para o seu trabalho criativo de dança e música nos filmes, na TV e em discos".Aprendendo no Harlem A ligação de Astaire com os irmãos Gershwin - Ira, o letrista, e George, o compositor - nasceu na Broadway, nos anos 20. Eles escreveram dois musicais para Fred e sua irmã Adele (Lady Be Good!, de 1924, e Funny Face, de 1927). Em pouco mais de um ano, entre 1936/7, data da morte de George, eles ainda forneceram 12 gemas para dois filmes de Astaire. Durante mais de uma década, Fred e George iam regularmente ao Harlem para ver e ouvir as novidades dos músicos e tap dancers negros. As mais antigas gravações de Fred foram feitas com George ao piano. Além de pensar jazzisticamente, o impulso rítmico do jazz, os improvisos cheios de swing do trompete, do sax ou do piano e os solos de bateria mexiam fisicamente com ele desde os tempos de Broadway. Era natural que levasse esta marca para Hollywood já em seu primeiro filme, em 1933. Decker toma uma pequena cena de 1'40" (que você pode ver no YouTube) para comprovar sua tese. Mas não foi uma cena qualquer, e sim o primeiro solo de dança de Astaire num musical de Hollywood sob os sons de uma autêntica jam session. Foi no dia 7 de setembro de 1933, no filme Flying Down to Rio (Voando para o Rio). Decker fez do título da canção o título de seu livro, tamanha a adequação da performance à sua tese de que o jazz está no núcleo vital da arte de Astaire como coreógrafo, tap dancer e bailarino: Music Makes Me (Do The Things I Never Should Do). A letra de Edward Eliscu e Gus Kahn afirma que "a música me leva a fazer coisas que jamais deveria fazer". A cena é antológica. Na cidade do Rio de Janeiro, Astaire ensaia um grupo de coristas para o show da noite. O roteiro descreve: "À esquerda, o bandleader, entediado, começa a tocar a música do número de Astaire, que, conversando com as meninas, começa a sapatear em espasmos involuntários. Pede aos músicos que parem. Volta a dar instruções às coristas, mas a orquestra recomeça. Sucumbe de novo à música, pede que parem. Numa terceira vez, cede em definitivo ao impulso físico que a música lhe proporciona e faz um número incrível de tap dance". Acontece que no filme, anota Decker, a música jamais para. A estrutura musical da canção integra-se à cena e provoca instintivamente Astaire a dançar. Decker chama a atenção para o pianista que em ópera é chamado de repetidor, ou seja, o que ensaia com os cantores as árias - no caso, o repetidor de Fred era Hal Findlay, não creditado no filme. Ele ensaiou com Astaire os passos de dança. Os músicos em segundo plano são fake, dublam o verdadeiro sexteto. O que faz Astaire dançar na cena? "A música", escreve Decker, "mas não uma música qualquer: a música popular sincopada que, na maior parte de sua carreira significava um estilo jazzístico, fosse swing, boogie-woogie, blues, soul, jazz ou até, como no caso de Music Makes Me, o improviso coletivo típico do jazz dos anos 20". O mantra interno desta cena retornou a cada novo filme, gravação de disco ou programa de TV que Astaire fez na vida. Só mais um exemplo, e magnífico, do ano seguinte, 1934. O filme era The Gay Divorcee (Alegre Divorciada), onde ele dançou pela primeira vez com Ginger Rogers. Em The Continental (também disponível no YouTube), ele de novo sucumbe à música que o empurra para danças no meio da canção interpretada por Ginger. Jam session de sonhoEm 1952, já imortalizado como um dos ícones do século 20, Astaire realizou um sonho secreto do qual ele provavelmente nem tinha consciência: participar de uma jam session. A ideia foi do produtor Norman Granz. Ele já tinha enorme prestígio com seu J.A.T.P. (os famosos Jazz at the Philharmonic, grupos inter-raciais de grandes músicos de jazz que faziam turnês em grandes shows em formatos variados; deles participavam nomes como Ella Fitzgerald, Count Basie, Duke Ellington e Coleman Hawkins, entre muitos outros). Ideia profética, pois construiu os 4 LPs originais (hoje 2 CDs) intitulados The Astaire Story, um dos momentos mais preciosos da história do jazz moderno. Capta o cantor e tap dancer aos 53 anos e é o melhor registro de dezenas de seus clássicos. Ao todo, 38 performances, em 13 sessões de gravação em dezembro de 1952 em estúdio. A "cozinha" ficou com o então recém-formado Oscar Peterson Trio. Sem bateria, o trio incluía duas feras: Barney Kessel na guitarra e Ray Brown no contrabaixo. Completavam o sexteto o trompete de Charlie Shavers, o sax tenor de Flip Phillips e a bateria de Alvin Stoller. "A facilidade de integração num contexto em que seus talentos não estavam no centro expande a noção de Astaire como tap dancer e cantor tentando encontrar um lugar na música como um jazzman faria", comenta Decker. Lá estão todos os clássicos, com direito até a introduções faladas em que Fred explica a origem e as circunstâncias de sua criação. Além de sua incrível capacidade de cantar com suprema elegância e expressividade, ele surpreende com três danças: Slow, Medium e Fast Dances em que improvisa como tap dancer, enquanto os músicos improvisam sobre a estrutura do blues. Fred anuncia a primeira delas com estas palavras: "Vocês sabem que este também é um disco de jazz, e jazz quer dizer blues". A caixa com 2 CDs da Verve, hoje Universal, jamais saiu de catálogo. Foi a coroação de uma carreira maravilhosa. E dizer que ele fez tudo isso sem sequer conhecer histórica e tecnicamente a arte que o imortalizou. Será? Ou Astaire apenas "vendia" uma persona parecida com a do Monk amalucado para aumentar os prodígios de sua arte? Em uma de suas frases mais famosas, ele afirmou que "sei tanto sobre a evolução da dança, sua história e filosofia quanto sei sobre como um tubo de televisão produz a imagem - ou seja, nada. Não sei como tudo começou e nem quero saber. Não quero provar nada. Eu só danço". Pode ser. Mas é quase impossível acreditar nessas palavras. Principalmente depois que Music Makes Me nos obriga a rever sua filmografia com sensores jazzísticos. Afinal, equilibrar-se por tantas décadas numa corda bambíssima, contrabandeando música e dança em filmes de enredos ruins, já seria algo espetacular. Levar o DNA do jazz para o tap dancing e a coreografia dos musicais coloca Fred Astaire no privilegiadíssimo patamar de criadores do jazz como Armstrong, Ellington e Monk.* João Marcos Coelho é jornalista, crítico musical, autor de No Calor da Hora (Algol)

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