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Um olhar particular

Deficiência na visão transforma a narrativa de Guadalupe Nettel

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

Logo no início de O Corpo em Que Nasci (Rocco), a narradora conta que, ainda criança, era obrigada a andar com um curativo tapando um dos olhos - justamente o saudável, pois o outro apresentava uma obstrução de nascença da pupila. Segundo os médicos, a intenção era estimular o desenvolvimento do "defeituoso". O que acontece, no entanto, é que a menina, além de sofrer uma tontura constante, era obrigada a tatear um mundo formado por borrões sem forma, além de enfrentar os comentários maldosos dos colegas de classe.A mexicana Guadalupe Nettel também nasceu com um olho que lhe oferecia apenas 10% da visão. Antes de levá-la a uma reclusão, o problema incitou sua carreira literária, especialmente ao tratar de temas que trafegam no tênue limite entre normalidade e anormalidade - e também como as fronteiras entre ficção e realidade aparecem irremediavelmente borradas para o leitor. O Corpo em Que Nasci traz um longo depoimento da narradora no divã de um analista, lembranças dos acontecimentos que marcaram sua infância e adolescência no duro caminho do autoconhecimento. No meio do caminho, é atropelada pela sinceridade dilacerante dos pais e suas respostas honestas demais para sua pouca maturidade - em vez de fomentar respostas, as observações paternas deixam a menina ainda mais confusa.Para completar o quadro sombrio, há a vizinhança formada por exilados argentinos e chilenos fugidos de ditaduras, cujas crianças não conseguem esconder o olhar triste. Mas, acredite, a narrativa de Guadalupe guarda também bons momentos de humor.

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