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Um olhar aceso e polêmico

No rastro das reflexões em torno da produção de Gilberto Freyre - que vem tendo parte de sua obra relançada nos últimos meses -, temas como o da mestiçagem voltam ao centro das atenções no País

Por Lilia Moritz Schwarcz
Atualização:

Neste ano de 2010, Gilberto Freyre, que sempre foi moderno por escolha, autodefinição e provocação, inundou a agenda nacional. Tema de congressos; referência nos discursos de políticos em fase de eleição; nome de prato em restaurantes elegantes e "interessados na mistura", o antropólogo está na moda, mais uma vez. Seus livros vêm sendo relançados com sucesso, e nunca se falou tanto em mestiçagem, hibridismo e trópicos. É certo que a maioria conhece o autor pernambucano apenas por conta de seu livro mais famoso, Casa-Grande & Senzala, ou no máximo por causa das demais obras que completam sua trilogia sobre a história brasileira: Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso. Nesses títulos, o "e" não é detalhe ou desleixo de revisão. Ao contrário, representa a noção de "antagonismo de equilíbrios", que mostra como, por aqui, tensões e acomodações andam lado a lado. Da mesma forma como a ostra produz pedras quando doente, toda a literatura de Freyre é marcada por antinomias avaliadas, simultaneamente, de maneira positiva e negativa. Além do mais, o antropólogo é dono de obra extensa, em que preside uma clara divisão entre grandes livros e outros... nem tanto. Nos títulos citados, e em ainda outros como Nordeste, Açúcar ou Ingleses no Brasil, esse livre-pensador surge pouco dogmático, nada dado a certezas. É forçoso reconhecer, porém, que nem todos os textos de Freyre resistem bem ao tempo, a despeito de guardarem relevância enquanto documentos de época. E esse é o caso da leva de livros que acaba de ser publicada pela editora É. Nosso autor é escritor prolixo e, a partir de seus 20 anos, praticamente nos legou um livro por ano: bastante desiguais, claro. Alguns deles, como Vida, Forma e Cor, trazem crônicas saborosas de Freyre. Nesse caso, a coletânea trata de arte e artistas: pintores, prosadores, escultores, ensaístas. A uni-los, a pena forte de Freyre, que viu o mundo a partir de seu olhar interessante e interessado, e muito particular. Famosa é a crônica, Modernidade e Modernismo nas Artes, na qual declara que os modernismos (como o paulistano) passam, mas a modernidade fica: provavelmente a sua. Freyre também se imiscuiu em ciência alheia, publicando livros como Homens, Engenharias e Rumos Sociais e Sociologia da Medicina. No primeiro, cuja primeira edição é de 1987, discute a ocupação da Amazônia, o problema do uso desordenado das florestas e assevera a importância da introdução de novas tecnologias e do exercício de uma engenharia social, humana e física. No segundo (de 1967), Freyre mostra imbricações entre as duas disciplinas para o combate a males que assolam nossa sociedade: distúrbios mentais, conflitos geracionais, crises domésticas. Nos dois casos, temos livros de fôlego mais curto, uma vez que lidam de maneira um tanto datada com questões, com certeza, atuais. O mesmo pode ser dito de Sociologia - Introdução ao Estudo dos Seus Princípios. O texto de 1945 apresenta a própria trajetória intelectual de Freyre, assim como sua visão sobre "a análise e interpretação do Homem social". Espécie de manual, muito em voga no contexto, a obra resta incompleta, já que o cientista social prometera mais dois volumes: um sobre método, outro sobre história da disciplina. Como os demais livros da mesma fornada, também esse tem interesse para o leitor cioso de conhecer a obra de Freyre e sua formação como pensador. Mas, diferente dos demais, não envelhecem tão bem, e conservam suas certidões de nascimento aparentes.Diverso é o caso do segundo conjunto de obras publicado pela editora É. Refiro-me aos livros que tratam da lusitropicologia; espécie de ciência multidisciplinar que Freyre intentou criar, unindo antropologia, sociologia, ciência política, medicina, agronomia, etc. Marco na produção do antropólogo, eles se comportam como uma decorrência, não prevista, das teses expressas em Casa-Grande & Senzala, de 1933. O primeiro deles, O Mundo Que o Português Criou, sai logo em 1940, e apresenta conferências proferidas em 1937: uma na Universidade de Londres, três em universidades portuguesas. A obra condensa potencialidades do pensamento de Freyre, que não mais se contentava em circunscrever suas teses ao Brasil, e no fundo almejava um modelo que desse conta do Império português e definisse sua forma própria de colonização: "Portugal, o Brasil, a África e a Índia portuguesa, Madeira, os Açores e Cabo Verde constituem hoje uma unidade de sentimento e de cultura." Anunciando uma síntese dos livros anteriores, Freyre dava, na verdade, um salto, expresso sobretudo em obras mais tardias como Um Brasileiro em Terras Portuguesas ou Aventura e Rotina, ambos de 1952, e O Luso e o Trópico, de 1961. Os dois primeiros livros são resultados da visita que fez às colônias portuguesas na África e na Índia, entre agosto de 1951 e fevereiro de 1952. Se Aventura e Rotina corresponde a uma sorte de diário de viagem, já o segundo livro traz a teoria e os resultados da investida. Com o final da Segunda Guerra Mundial e a desmontagem dos impérios coloniais, o Estado português viu-se diante de um dilema: ou aderia aos movimentos emancipatórios, ou criava discursos que legitimassem a manutenção dos domínios. Foi nesse momento que Freyre recebeu um convite do ministro do Ultramar, José Osório de Oliveira, para um passeio pelas "terras lusitanas". O antropólogo brasileiro era então conhecido como uma espécie de tradutor do "gênio colonizador do português" e, a essas alturas, transformara-se num grande consenso. Freyre aceita a oferta e passa a percorrer um longo trajeto dentre as possessões portuguesas. O fato é que às vésperas do final do Império o escritor pregava, sim, sua autonomia intelectual, mas, também, o modelo (cada vez mais obsoleto) da benignidade da civilização portuguesa. Nessas obras, ele sintetizaria o seu lusotropicalismo; a singularidade portuguesa para a aventura marítima; para a miscigenação e combinação de culturas. A viagem funcionava, também, como exercício de confirmação, uma vez que Freyre afirmava que, com ela, comprovava sua "intuição antiga", que lhe fizera desenvolver a tese sobre a capacidade ímpar do português de se "confraternizar com africanos, ameríndios e asiáticos, e de amar suas mulheres como ninguém". Enquanto o diário - prosa das mais saborosas, acompanhada de fotos do autor em campo - detalha pensamentos e experiências de Freyre; já Um Brasileiro coleta discursos do autor; e O luso e o Trópico acrescenta as mensagens que o escritor recebeu durante a viagem. Entretanto, quando lançadas, essas obras logo seriam consideradas instrumentos de legitimação do salazarismo, do Estado Novo português e do colonialismo retardatário. Destacava-se, em tempos nervosos, menos o equilíbrio e mais o conflito, inscrito nas práticas de discriminação, nas barreiras raciais ou na violência imperante. Freyre com certeza não se detém nessas realidades, até porque se encontrava em viagem oficial. Mas seu objeto era outro, uma vez que pretendia desenvolver suas teses sobre o lusotropicalismo, e a capacidade plástica, tolerante e fraternal - uma espécie de vocação - do português. Se esses textos resistem pouco aos dias de hoje, como bem mostram as excelentes introduções que acompanham as novas edições, sobrevivem como fontes a atestar um imaginário e persistente sobre os ibéricos, donos únicos de um modelo integrativo e universal. Aí está o famoso iberismo, de certa maneira revisitado por autores distintos (e cada um à sua maneira), de Sergio Buarque de Holanda a Oliveira Viana. Além do mais, nesses textos se destaca a qualidade literária de Freyre, que descreve fatos como quem conta uma boa história. Basta lembrar da citação que faz à qualidade épica do português. A inquietude teria feito deles grandes navegadores, dados à "aventura" do desconhecido, e à "rotina" do conhecimento. Esse duplo apego é simbolizado a partir da evocação a Ulisses, o personagem que se arrisca a ouvir o canto das sereias, mas se amarra ao mastro do navio para não se deixar enfeitiçar. Por isso, diz ele, o português é aquele que encontra "mil aventuras na rotina de um dia só". Algumas obras nascem, ficam maduras e envelhecem. Outras, mantêm sua juventude ao serem redescobertas, a cada dia. Se esses textos mais tardios de Freyre não permanecem como clássicos, guardam muito dos segredos de um grande autor, sempre ambivalente e atual. Afinal, não há utopia como a de Freyre, que imaginou uma sociedade de iguais e alertou para o perigo das conclusões definitivas. LILIA MORITZ SCHWARCZ É PROFESSORA TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA DA USP E AUTORA, ENTRE OUTROS, DE O SOL DO BRASIL: NICOLAS-ANTOINE TAUNAY E AS DESVENTURAS DOS ARTISTAS FRANCESES NA CORTE DE D. JOÃO (COMPANHIA DAS LETRAS)

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