07 de julho de 2015 | 02h00
Então era ele! No entanto, o demo parecia inofensivo, e até frágil, e não só porque fosse miudinho e beirasse os 80, nada indicando que daria conta de chegar, como chegou, aos 92. Com o colarinho abotoado e um paletó que certamente atravessara décadas, Frieiro me deu a impressão de ter apeado de uma velha fotografia de parede. Um desses senhorzinhos, avaliei, que esposas mandonas vestem da cabeça às meias e, no mais frondoso verão, não deixam sair à rua sem um casaco de lã.
Com tudo isso, Eduardo Frieiro seguia ativo, tanto que por aqueles dias publicara mais um livro, Feijão, angu e couve, ensaio instantaneamente clássico sobre a cozinha mineira. Nós, os moleques que Murilo Rubião levara para trabalhar com ele no Suplemento Literário, ridicularizamos o título, e houve quem (não eu) sacasse variantes culinárias de outras obras de Frieiro. Os livros, nossos amigos virou “Nos vidros, nossos amidos”. Como era Gonzaga? tornou-se “Comera Gonzaga?”, e Inquietude, melancolia, “Quitute, melancia”. Escapou A Ilusão literária, que mais de uma vez vi Otto Lara Resende recomendar, com ênfase, como leitura indispensável não só para escritores em formação.
Autoridade e experiência para dar lições é o que não faltava ao autodidata Frieiro, moço pobre, filho de imigrante galego, que não pôde ir além do curso primário, e ainda assim chegou a professor catedrático de literatura espanhola. Muito além de bibliófilo, montou e dirigiu a maior biblioteca estadual de Minas. Não se interessava apenas pelo texto: começou como tipógrafo e veio a ser um refinado conhecedor das artes gráficas. A ele se deve a irretocável primeira edição do livro de estreia de Drummond, Alguma poesia, de 1930, hoje disponível em edição fac-similar. No Rio, o passadista Medeiros e Albuquerque não viu poesia alguma no volume – mas reconheceu nele “alguma tipografia”.
Devemos mais a Frieiro: por sua iniciativa e sob seus obsessivos cuidados, existiu em Belo Horizonte uma cooperativa de autores, Os Amigos do Livro, responsável por lançamentos como O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, e Brejo das almas, de Drummond. Sim, gente nova. O editor embirrava com a rapaziada modernista, mas lhe dava força no apuro físico das edições. Como se dissesse: que ao menos neste aspecto a coisa pare em pé.
Nisso não transigia. Quando, em 1925, os moços lançaram A Revista, ele bateu pesado, criticando a “feitura gráfica ronceira” da publicação. Bateu também no conteúdo, claro, e não poupou o líder informal do grupo: sem citar o nome, gozou Drummond como “aquele mocinho esgrouviado que tem cara de infusório”. O jovem poeta – seu colega na Imprensa Oficial – “espremeu tudo o que em fermentação lhe escaldava o caco, e que não era muito; apenas a borra das últimas, apressadas leituras de revistas francesas. Agora está aliviado. E os leitores também.”
Como os modernistas de Minas, aprendi a gostar também desse Frieiro belicoso.
Não conseguia dominar a própria língua quem tão bem dominava a língua portuguesa. Dois anos depois de se livrar da vesícula, na década de 1940, ele registrou em seu diário: a saúde, de forma geral, tinha melhorado; com a glândula se fora, entre outras macacoas, “uma prisão de ventre histórica”. O saldo positivo, porém, não bastava para fazer dele um homem feliz: “Já não sou o mesmo Frieiro, bilioso, ácido, mordaz, apto como poucos para o cultivo daquela ‘art of making enemies’, tão prezada pelos britânicos seletos”.
Faço ideia do que seria ele se ainda tivesse a vesícula, penso eu quando volto às 395 páginas de seu Novo diário, encharcadas de veneno e maledicência, publicadas em 1986, quatro anos depois de sua morte. Nas primeiras linhas, Frieiro conta que pôs fogo nos originais de um texto anterior àquele, o Diário de um homem secreto, por haver chegado à conclusão de que nele só havia “maldade, inconveniências, orgulho, peçonha, muita peçonha”. É verdade que se arrependeu do arrependimento, pouco depois de ver arderem os 22 cadernos que sua letra caprichada enchera ao longo de uma década.
“Maldizente, sim; malfazejo, nunca”, assume Frieiro já na epígrafe do Novo diário, iniciado quatro anos depois de o fogo silenciar o Diário de um homem secreto. E põe maldizente nisso. Mas graça não lhe falta, e eu gostaria de voltar ao assunto, se você não se opuser.
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