Um Hamlet francês com a grife Peter Brook

William Nadylam vive o príncipe dinamarquês na montagem do lendário diretor, que será vista em São Paulo durante quatro noites

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Por Agencia Estado
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O ator francês William Nadylam, nascido há 35 anos na cidade de Montpellier, sempre ouviu dos pais, um camaronês e uma indiana, que o Brasil não era apenas o país do futebol. Era, principalmente, um dos poucos e privilegiados territórios do planeta em que as diferentes raças e culturas ainda conviviam em relativa harmonia. Nadylam desembarcou domingo em São Paulo para viver aqui, ironicamente, uma tragédia que em nada lembra os relatos fabulosos de sua infância: terá seu pai assassinado por um tio inescrupuloso e ainda verá a mãe e todo um reino migrarem para os braços do assassino. Corroído pelas dúvidas e assombrado pelo fantasma paterno, repetirá o brado shakespeariano que acompanha a humanidade por quase 500 anos: "Être ou ne pas être? C?est la question." (Ser ou não ser? Eis a questão). Nadylam é o Hamlet negro da montagem francesa assinada pelo lendário diretor inglês Peter Brook, 77 anos, que há quase 30 vive em Paris. A peça estreou dia 7 de maio em Zurique, na Suíça, passou pela Alemanha e Itália, e chega à cidade para quatro apresentações (os ingressos já estão esgotados), de quinta-feira a domingo, no teatro do Sesc Vila Mariana. Peter Brook, que desta vez não veio ao Brasil, convocou um elenco multirracial para a montagem deste Hamlet. Nadylam, que vive o príncipe dinamarquês que empresta seu nome à tragédia, foi descoberto por Brook no ano passado, quando estava em cartaz em Paris com a peça El Cid. Não foi submetido a testes e ainda teve o privilégio de ensaiar sozinho com Peter Brook durante dois meses, antes que o restante do elenco fosse selecionado. Na segunda-feira, pouco antes de seu primeiro "compromisso oficial" em São Paulo - uma aula de capoeira -, William Nadylam conversou com a Agência Estado: Agência Estado O que existe de especial no método de trabalho de Peter Brook? William Nadylam - Ele é um homem muito paciente. Se está produzindo alguma coisa, concede um tempo para que você entenda o que é. A noção do tempo talvez seja a grande marca de seu trabalho. Ele não força as coisas, sabe esperar pela situação certa, no momento certo e com a pessoa certa. Ele é muito sério e exigente. Para trabalhar com ele, você tem de colocar toda sua energia e honestidade no personagem. Se você está diante dele, não é para brincadeira. Existe alguma razão para este Hamlet ser interpretado por um ator negro? Não acredito nisso. Ele estava à procura de um ator e aconteceu de este ator ser negro. Mas ele poderia ser loiro, ruivo ou japonês. Como você explicaria a longevidade deste texto? Isto é um mistério, talvez aí resida a marca do gênio de Shakespeare. O mundo mudou muito, mas as questões essenciais são as mesmas. As guerras mudaram suas táticas, mas continuam sendo guerras. Vemos diariamente irmãos matando irmãos em busca de poder. As noções de moral e família também são outras, mas o egoísmo ainda faz parte da base do ser humano. Como Peter Brook trabalhou com este texto? Fiquei sabendo, somente há três dias, que esta é a quinta vez que ele dirige Hamlet. Que sonhos o atraíram de volta a esta peça? Acho que ele está sempre procurando por algo puro, sempre tentando eliminar o que não é essencial. Se ele voltou a este texto, é porque ainda está tentando entender o que Shakespeare realmente quis dizer. Qual foi sua reação ao ser convidado para a montagem? Tive muito medo de não ser capaz de fazer o papel. Eu achava que a qualquer momento ele iria me chamar a um canto e dizer: "Me desculpe, mas eu cometi um grande engano. Você está fora." Como este dia nunca chegou, comecei a ganhar confiança. Se ele acreditava em mim, passei também a acreditar. Você diria que ser dirigido por Peter Brook já é um marco em sua carreira? Vou contar um fato ocorrido durante os ensaios. Houve um dia em que estávamos exaustos, tínhamos repassado várias vezes uma cena muito energética, quando ele decidiu fazer uma pausa. O elenco deixou o palco, mas eu fiquei por ali e ele não percebeu. Quando eu olhei, ele tinha um sorriso no rosto, diante do palco vazio. Ao perceber minha presença, perguntou: "Você está vendo?" Eu respondi: "Vendo o quê?" "Você não está sentindo?", ele continou. Eu novamente falei: "Sentindo o quê?" Então ele disse: "A energia. Os atores já se foram, mas a energia deles continua aqui no palco. Você precisa aprender a ver isso." Até hoje, tento me convencer de que algum dia eu também serei capaz de ver o que ele vê. ServiçoHamlet, com direção e adaptação de Peter Brook. De amanhã a domingo, no Sesc Vila Mariana, Rua Pelotas, 141, tel.: 5080-3000. Ingressos esgotados.

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