Um grande romance sobre o País e a criação

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Por Agencia Estado
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A Casa dos Espelhos, no original Le Pavillion des Miroirs, romance publicado originalmente em 1994, deu a Sergio Kokis os quatro principais prêmios literários do Canadá francês. Kokis pertence, como Michael Ondaatje, a esse grupo de escritores canadenses que não se enquadram imediatamente na seqüência de uma história. São imigrantes que chegaram lá com seu passado exótico à espera de registro. O caso de Kokis é mais radical que o de Ondaatje: ele escreve num idioma adotado mas que também é dele por direito de conquista. Há vários paralelos que podem ser feitos entre os dois escritores, além da condição de imigrante e descontando o fato de um viver no Canadá francês e outro no inglês. Ambos, nesses romances, voltam ao país de origem através de seus personagens. Ondaatje criou Anil, uma mulher, enquanto Kokis escreveu uma pseudo autobiografia, o que nem diminui nem aumenta, trata-se apenas de um dado. A Casa dos Espelhos é um romance de formação: um menino cresce no Rio durante os anos 50, quando o País permitia alguns sonhos num mundo onde a sensualidade fortíssima mistura-se com miséria e outros tipos de brutalidade. São os olhos da criança que acompanham a seqüência infernal da decadência que se estabelece antes da ascensão, pois nunca haverá ascensão. Seu pai, um homem de inciativa, cheio de aspirações com sua oficina para conserto de eletrodomésticos, baixa das nuvens para o rés do chão onde se dá aquela decadência - o micro-empresário nunca sairá do lugar, claro, ou melhor, andará na marcha-ré. A mãe está o tempo todo envolvida em cerimoniais sincréticos onde o que conta é a repressão sexual extravasada mais tarde na irônica tábua de salvação da dignidade familiar: o apartamento acaba transformado num pequeno bordel. No romance de Ondaatje, também sobre a baixa classe média, a violência política é explícita. No de Kokis, ela está por baixo da miséria. Ossadas anônimas são investigadas por Anil. No Rio, o menino anota o aparecimento de cadáveres em vários lugares, vítimas do horror social. As comparações poderiam prosseguir, mas pode ser que já tenham sido suficientes para mostrar como um país, o Canadá, pode ter seus pontos de encontro nas diferenças de idioma e origem dos seus habitantes, ou seja, a unidade no divergente. A última: tanto Ondaatje como Kokis vão e voltam. O franco-canadense alterna exuberantes capítulos sobre o passado do menino carioca com reflexões feitas pelo pintor de Quebec voltado para a história pessoal mais para explicar o adulto do que para recuperar o tempo nem um pouco perdido. Determinante no livro é a ação do carnaval, entendido aqui na ótica de Bakhtin. São as cores e o caos, o riso desmistificador que se alternam com as reflexões ásperas e pungentes do artista quebequense. Seu retorno imaginário ao país de origem é vibrante. A linguagem estala em cores, sensações, humor e emoções misturados num pandemônio onde o apelo erótico divide espaço com o Tanatos onipresente - a tensão percorre o livro de modo exasperante. Os cadáveres continuam aparecendo na praia, talvez mais anônimos do que as ossadas de Ondaatje. Não há lugar para a mínima dignidade. O local onde mora com a família também é onde fica moradia de Manuel Bandeira (a epígrafe é do poeta), cujo apelo à autoridade municipal para cuidar da higiene da área é ignorado, como a violência diária em todas as suas formas. A militância política vem apenas como outra decepção. Tudo isso serve de matéria-prima para Kokis construir uma Guernica que deixaria as posteriores Guernicas para trás. A Guernica de Kokis, que se expande pelo romance, é a matança industrial de bois no interior do Rio. A truculência alterna-se com o lirismo. Não para compensar a desgraça e sim como expressão do inexplicável. O menino cresce, engaja-se na luta contra o regime militar e termina no exílio. Não ficamos sabendo muito sobre essa fase, mas o próprio personagem pretende passar meio por cima disso. Nada justificaria entrar em detalhes redundantes sobre o nó das contradições mesquinhas ou grandiosas. Persistirão as cores e imagens literárias ou plásticas, num emaranhado sem solução. O absurdo está no fato de que algo perfeitamente evitável, como a higiene pública reivindicada pelo poeta, torna-se tão kafkiano quanto a abundância das mortes: simplesmente não haverá solução. E, no entanto, não há como conter o riso e a pujança das cores nas telas nem como evitar o vapor alcoólico de um eventual momento poético além da solidão, essa condição básica do eterno estrangeiro. O livro é um desses raros romances que podem ser considerados uma peça vital, a única maneira de justificar o processo criativo, tema de investigação da obra. A Casa dos Espelhos - de Sergio Kokis. Editora Record, 304 páginas, R$ 32,00

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