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Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

Um gato e o grande gatuno

Ele se deita no batente da janela e fica olhando para baixo. Para o pequeno felino enclausurado num quarto, o mundo de baixo, este jardim, é um espaço vastíssimo, quase sublime.

Por Milton Hatoum
Atualização:

Ali no alto, em seu leito estreito no segundo andar, o gato com ar blasé adormece e sonha. E quando desperta, o corpo amarelo se espreguiça, e os olhos acinzentados brilham nessa manhã abafada e estranhamente escura. De repente dá um passo perigoso até o limite do batente e estica a cabeça para o abismo.

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Há anos eu o admiro em manhãs ensolaradas ou nubladas, mas ele nunca se aproximou tanto do vazio... E o vazio talvez seja o limiar de algum sonho ruim.

Penso no impulso suicida do belo felino e me pergunto se ele vai dar o salto e cair nesse pequeno jardim, onde um cronista solitário acaba de ler os jornais. Logo hoje, nessa manhã de primavera, ele parece possuído por um impulso suicida. A cabeça, voltada para o gramado, observa na primeira página o rosto abjeto do grão-gatuno, que batizou uma de suas empresas com o nome “Jesus.com”. E eis que surge um Porsche, em nome do Filho de Deus. Nessa obscura empreitada revelada pelo judiciário suíço, a palavra heresia rima com vilania: o milagre dos peixes tornou-se o milagre dos Porsches e de outros luxos.

Mal sabe o gato que milagre maior é o grande gatuno permanecer em liberdade, e à frente do Congresso Nacional. Esse exímio malabarista lança para o ar várias garrafas ao mesmo tempo, e nenhuma se quebra. Não por acaso a obsessão de “vossa excelência” é construir um shopping luxuoso nas traseiras dos edifícios do poder legislativo. Mas de vez em quando os bancos suíços dão um basta e bloqueiam contas com fortunas ilícitas desta América. Logo ali, a poucos quilômetros do Congresso, há milhares de favelados, muitos sem emprego. Se um pai de família, pobre e desempregado, for flagrado ao furtar um quilo de feijão, será imediatamente preso. Pelourinho para os pobres, quase todos pretos; e foro privilegiado para o grande gatuno, que indicou comparsas para compor o “conselho de ética”.

Se o felino lá em cima pudesse ler as manchetes dos jornais, pensaria: o Brasil é sobrenatural. Mas há acordos secretos, nada sobrenaturais num Congresso que cada vez mais parece um pavilhão de degenerados. Não sabe ler, esse simpático gato amarelo, que não tira os olhos do chão. Analfabeto e sem memória, ele apenas vive no instante, que é a eternidade felina. Mas quando saltou e caiu no gramado – tal uma luz súbita ou uma estrela cadente –, fiquei surpreso com a sua desenvoltura física, e mais ainda com a sua indignação cívica: rasgou a fotografia enorme do rosto do gatuno e despedaçou a primeira página de dois jornais.

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Eis um exemplo de como certos animais têm uma incrível capacidade para sobreviver, indignar-se, e depois sair andando com uma pose solene: a solenidade das coisas que acabam.

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