Um exercício de memória do futuro

Crítica

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Por Helena Katz
Atualização:

A nova produção de Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira, Baseado em Fatos Reais, não é exatamente uma obra, mas sim a apresentação pública de uma pesquisa que produziu excelentes materiais. Justamente por isso, precisa ser lida dentro da trilogia que ela encerra, e não como o espetáculo autônomo que, de fato, não é.Muitos artistas contemporâneos têm refletido sobre a natureza do espaço e o modo adequado de mostrar um outro tipo de produto. A opção dessa dupla foi o palco, buscando construir lá as indicações de que nossa percepção tem um tarefa extra: a de aprender a não funcionar somente no piloto automático, lendo tudo o que se apresenta no mesmo lugar como farinha do mesmo saco. Trata-se de uma proposta que enriquece essa conversa. Desenhada por Juliana Augusta Vieira, a luz e, depois, o escuro derrubam a quarta parede, nos dizendo que, embora estejamos em um teatro, sentados na plateia, não receberemos o de sempre.É na articulação com as duas outras criações que a antecedem, O Nome Científico da Formiga (2008) e O Animal mais Forte do Mundo (2009), que se torna visível o fato de que o projeto de pesquisa que estava em curso agora se abre para o seu futuro. Não à toa, nesse meio de caminho, O Animal mais Forte do Mundo já recebeu uma outra versão, nomeada como O Animal mais Forte do Mundo.2, na qual já anunciava o despojamento e a secura que agora se adensaram. Quem deseja encontrar algo parecido com os dois primeiros espetáculos dessa trilogia no Sesc Consolação, onde Baseado em Fatos Reais será mostrado hoje e amanhã, às 21 h, vai estranhar.Primeiro, é necessário lembrar que o começo, em 2003, com Somtir, foi a busca de um possível acordo entre a movimentação do Balé Popular do Recife, da qual Ângelo Madureira é um dos herdeiros, com a da técnica de balé clássico da formação de Ana Catarina. Essa ignição inicial os conduziu ao que se transformaria no centro de seu interesse. Nas três obras que se seguiram (Outras Formas, 2004; Como?, 2005; e Clandestino, 2006), começaram a inventar um vocabulário próprio e foram surgindo as colagens que transformariam na sua metodologia de pesquisa.Com a obsessão necessária a uma tarefa dessa envergadura, depois de vários exercícios de montagem, reuniram 1.800 fotos dos passos de dança usados nas suas quatro primeiras coreografias, as recortaram e rearranjaram. Assim nasceu o material de Baseado em Fatos Reais. O nome explicita o jogo entre o que existiu (os passos que vêm da cultura popular usados para compor aquelas obras, ou seja, os "fatos reais") e o que deles pode continuar a existir hoje. Algo como um exercício de memória do futuro.Desta vez, Ângelo e Ana Catarina estão acompanhados por Carolina Coelho, Patricia Aockio, Marcela Sena, Luiz Anastácio e Beto Madureira, um elenco em diferentes estágios de adaptabilidade na sua proposta - o que enriquece ainda mais essa pesquisa.Sínteses. A presença de Beto Madureira funciona como uma marca poderosa. Intérprete com luz própria, atua como a referência ao ambiente de onde esses materiais se originaram. Por conta da dança popular ser a fonte única da sua movimentação, torna-se um contraponto às preciosas sínteses mestiças da dança de Ângelo Madureira. Beto esclarece de que fatos reais se fala, enquanto Ângelo, acompanhado pelo elenco, questiona a própria existência de um real como sendo um fato ao dançar como estão os tais "fatos" hoje.Há muito frescor no que aparece quando o elenco faz algo junto e, quem sabe, esses volumes, ainda pouco explorados, sejam o pontinha visível do que pode vir a ser gestado. Tendo avançado muito na construção do vocabulário, chegou o momento da pesquisa burilar uma dramaturgia específica para o material que já se consolidou, mesmo que, no momento, não faça sentido buscar pela configuração de um espetáculo. Na verdade, Baseado em Fatos Reais, ao mesmo tempo que encerra um ciclo, inaugura uma outra fase na pesquisa. Um pé no que existe, um pé no que ainda não existe.BASEADO EM FATOS REAISSesc Consolação. Teatro Anchieta (320 lug.). R. Dr. Vila Nova, 245, 3234-3000. Hoje e amanhã, 21 h. R$ 10. Até 22/4

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