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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Um estranho no paraíso

As canções que tocavam no piano de nossa mãe ajudavam a suportar o vale de lágrimas

Atualização:

Vivemos num vale de lágrimas. E não é por acaso que rezo o “Salve Rainha, Mãe de misericórdia(...) A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas…”.

As canções quetocavam no piano denossa mãe ajudavama suportar ovale de lágrimas Foto: Steve Buisansse/Pixabay

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Não é difícil ver que a Virgem Maria é a nossa mãe e advogada galáctica. No meu caso, Maria de Lourdes (Lolita), em cujo ventre morei por nove meses, foi uma prodigiosa pianista frustrada (aos 6 anos ela tocava piano), mas virando mãe de seis filhos seu palco era a família para a qual ela dava um recital no fim do dia, sob o olhar orgulhoso de papai.  Foi ela quem nos apresentou aos grandes mestres – que chamava de difíceis, trocando-os pelos não menos talentosos Braguinha, Lamartine Babo, Jobim, Lyra, Pixinguinha, Bororó e Ary Barroso. Dos clássicos, tocava uma música do russo Alexander Borodin popularizada no musical Kismet, levado à cena na Broadway em 1911 e num filme de 1955. A canção era A Stranger in Paradise e mamãe a tocava talvez mais para nós do que para ela. Aliás, no fundo, era Borodin quem tocava a pianista... A letra americana de Um Estranho no Paraíso reúne uma reprimida e rotineira sensualidade. A do amante diante do corpo da amada, que vai transformar a poesia num doce encontro neste estranho paraíso chamado corpo que a dança nos dava permissão para sentir e abraçar. Um Estranho no Paraíso foi a primeira música que ouvi de Tony Bennett. A segunda foi Because of You. Ambas são dos anos 1950, quando – puxa vida! – eu tinha 17 anos, aprendia a dançar e estava “perdidamente apaixonado” por várias meninas.  A turma, porém, polarizou. Metade dizia que nada se comparava ao Sinatra de All or Nothing at All, o velho lema dos apaixonados de morte. Outros diziam que Tony era o máximo. O que as polarizações boçalmente imobilizam, trocando seis por meia dúzia, a vida resolve. Bennett ficou e muitos (sobretudo músicos negros e gays) também. Foram as músicas que cantavam que nos ensinaram a amar e aceitar o fim de um amor.  As canções que tocavam no piano de nossa mãe eram, vejo agora, como preces: ajudavam a suportar o vale de lágrimas.  Saudade, leitores. Foram essas músicas que abriram as portas do carinho físico e da sensualidade. Foram elas que tornavam o complicado, procurado e sempre difícil amor ser algo palpável, assustador e deliciosamente concreto.  PS: Sinatra eternizou-se e, entre outros milagres, fez parar de chover no Maracanã em 1980, mas Bennett mostra, com Lady Gaga, o milagre da música. Cantando, derrotou o Alzheimer. Cantando, como diz o velho ditado, espantamos nossos males. A música nos torna menos estranhos no paraíso e, certamente, no vale de lágrimas. 

É ANTROPÓLOGO SOCIAL E ESCRITOR, AUTOR DE ‘FILA E DEMOCRACIA’

Opinião por Roberto DaMatta
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