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Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

Um doido, um diabo e o Supremo

Passei pela Praça do Patriarca para conversar com um amigo e soube que ele andava pela República. De uma praça a outra é um pulo e decidi vê-lo, coitado, há anos circula no pior dos mundos: a loucura. Se bem que, às vezes, a insanidade não é o pior dos mundos. Em todo caso, meu amigo não é um louco furioso, nunca agrediu ninguém, e só é falastrão nas tardes em que está muito irritado ou nas noites de lua minguante.

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Por Milton Hatoum
Atualização:

Ele se diz um filósofo da rua, um pobre peregrino do pensamento; lê todos os livros que rouba e todos os que lhe ofereço, e empalha esses livros na calçada da rua da Bolsa do Café, “à mercê de outros olhos e espíritos”. Depois, prossegue sua andança sem rumo.

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Um dia me disse: sou um ser instável... Um deus alojou no meu peito todas as formas de canto e nenhuma dessas formas está à venda.

Não o questionei por uma razão simples: um peregrino nunca vende a alma ao estável.

Foi fácil encontrá-lo na Praça da República; ele se equilibrava com o pé direito no topo de uma pilha de caixotes, fazendo pose de bailarino engessado. Dizia coisas ao Rei, o cão fiel, que escutava seu dono e concordava com um ar blasé, chapéu na cabeça de pelagem amarela. Às vezes, meu amigo se dirigia a um pequeno público, dividido entre a chacota e a seriedade. Estava tão embriagado pelas palavras, que não me viu, mas gravei o belo discurso:

“Oh ministros do Supremo, prendam o Demo! Vossas excelências, muito mais que o nosso humilde e sofrido povo, sabem que reina na Câmara dos Comuns um déspota incomum, um deputado que escarnece da Casa do Legislativo e da Nação inteira. Vocês, doutos magistrados superiores, que leram Goethe e Guimarães Rosa, sem dúvida conhecem Mefistófeles e Hermógenes, terríveis personagens. E sabem que o Diabo do Legislativo não é figurado nem estilizado. Trata-se do Demo em carne e osso: o Cremulhão, o Belzebu, o Cão Extremo...”.

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Nesse momento, Rei latiu, mas um olhar furtivo do dono o calou, e o chapéu de dândi estremeceu na cabeça do vira-lata.

“Quantas alcunhas podem caber num homem só? E quem é esse homem, excelências? Um chantagista dos mais vis, um manipulador dos mais insidiosos, um torpe pactário das sombras... Um cultor do caos, que se aproveita das vantagens do caos! Vive também de outras coisas, como os senhores bem sabem. A saber: negócios ilícitos e vultosas propinas, provados e comprovados. E eis que surge o exportador de carne enlatada, mais um escárnio nacional. Há, por certo, dezenas, centenas de demônios na Câmara dos Comuns. Mas estes parecem diabinhos de proveta ou girinos luciferinos, se comparados ao Grande Lúcifer do subúrbio carioca. Como é possível, excelências, um representante do povo usar o nome de Jesus em tenebrosas transações e ainda permanecer impune? Que a justiça seja feita, pois o povo sabe que cada membro do Supremo é ‘Elegans in omni judicio’.”

O discurso foi interrompido por um policial; Rei soltou uns latidos de fidelidade a seu dono, e o pequeno público se dispersou. Tentei convencer o policial de que o meu amigo não era doido, e sim um andarilho irritado nesse fim de tarde, um pobre orador que estudara latim na juventude e suplicava ao Supremo para que prendesse mais um escroque da nossa triste República.

“Como ele se chama?”, perguntou o policial.

Meu amigo escutou a pergunta e, lá do alto, disse: Nabuco...

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Pulou do topo dos caixotes para o chão da Praça da República e acrescentou ao policial: Nabucodonosor.

Acompanhei meu amigo à delegacia. Rei nos seguiu; agitava o rabo e protestava com rosnados as injustiças desse mundo.

Rei nos seguiu; agitava o rabo e protestava com rosnados contra as injustiças deste mundo

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