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Um controlador de maridos

Drummond, na chegada dos telefones automáticos, em 1931: acabou a farra dos maridos

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Humilhado desde sempre pelos manuais de instrução, dos mais impenetráveis aos mais elementares, é com alívio que finalmente encontro um que não tripudia sobre os meus ineptos neurônios, capazes de acionar, quando muito, uma torradeira e um ventilador.

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O que tenho sob os olhos é um manual para bem utilizar o telefone. Não o meu já idoso iPhone 5, cujos recursos ainda estou longe de dominar além do básico. O objeto, aqui, é uma geringonça centenária ou quase: os telefones que havia nas residências de nossos avós ou bisavós, daí para baixo, na década de 20, e que eram então, em matéria de tecnologia das comunicações, o dernier cri, ou melhor, o derradeiro tilintar. Com o risco de você me situar na geração do Niemeyer e da dona Canô, confesso que topei ainda, na longínqua infância, com aparelhos como aqueles, e não foi, ai de mim, em algum museu da telefonia. Cheguei a ver pessoas se esgoelando no bocal de alguns deles - haste plantada no corpo de um tubo negro que uma das mãos sustinha no ar, na vertical, enquanto a outra mantinha um tubo menor grudado à orelha. Estava-se longe ainda dos avanços que tornariam possível a coabitação de bocal e fone.

Sou testemunha, na verdade, da utilização de estrovenga ainda mais antediluviana, os formidandos aparelhos telefônicos que havia na fazenda de minha família. Consistia, aqueles trambolhos, em avantajadas caixas retangulares de madeira afixadas na parede, em cujo abdome, digamos assim, se alteava, qual falo em riste, uma haste com o bocal. 

Num dos lados da caixa se pendurava o fone, semelhante ao do aparelho já descrito; no outro, ficava a manivela a ser girada para chamar a telefonista, mediadora incontornável de toda e qualquer comunicação telefônica. Você queria falar com a namorada? Nada feito sem a operadora, que apanhava o número e fazia a chamada. Só no final dos anos 20, começo dos 30, viriam - com exceção de uns poucos redutos do passado, como a nossa fazenda - os telefones automáticos, assunto para mais adiante.

Por ora, fiquemos neste manual impresso nas páginas de um desmilinguido catálogo da Rio de Janeiro & S. Paulo Telephone Company, contendo instruções hoje risíveis (lembra do Julio Cortázar ensinando a chorar ou a subir escada?), mas que, à época, eram indispensáveis para usuários no mesmo patamar cognitivo deste cronista. Para recompor o clima, vale transcrever o passo a passo na ortografia então vigente. Começando pelo começo, recomendava-se consulta à “Lista de Assignantes” para “obter o numero do telephone com o qual se deseja falar”. Isso feito, orientava o manual, “dê-se uma volta à manivela, leve-se o phone ao ouvido e espere-se que a telephonista diga: ‘Numero, faz favor?’” Sim, “por favor”. Comunicação e boas maneiras!

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No passo seguinte, deveria o usuário falar “diretamente no boccal do telephone, com os labios proximos ao mesmo”, se necessário recorrendo a gravuras elucidativas, impressas ao lado, da “maneira acertada” e da “maneira impropria” de telefonar. “Fale-se devagar e distinctamente, com tom de voz natural”, orienta o texto. Nada de pedir à operadora que ligue, por exemplo, para o 2627 (o telefone de meus avós Dora e Hugo no começo dos anos 30), e sim para o dois-meia dúzia-dois-sete, com o cuidado de pingar hifens entre as sílabas e solicitar que a atendente repita cada algarismo, num enunciado que o usuário deveria ir pontuando com a palavra “direito”. Depois, era encarar uma espera que, em se tratando de ligações interurbanas, mesmo para a cidade ali ao lado, poderia se estender por horas. 

Pode-se imaginar o solavanco benigno que significou a chegada do telefone automático, novidade que pôs fim, nas ligações locais, à intermediação de uma telefonista. Em Belo Horizonte (ou, como disse aquela personagem de Rubem Braga, “Belorizontem”), a revolução desembarcou às 14 horas do dia 23 de julho de 1931, conforme registrou no Minas Gerais o atento cronista Barba Azul - um moço de 28 anos, Carlos Drummond de Andrade, que meses antes estreara em livro com Alguma Poesia. 

A cidade, escreveu ele, “diverte-se com o telefone automático, achando a coisa mais engraçada do mundo escutar a voz que veio sozinha, sem que ninguém ligasse”. Uma febre: “Há um contentamento infantil nas pessoas que inauguraram ontem oficialmente o seu telefone particular, discando para todas as pessoas conhecidas”. 

No espaço de poucos dias, Barba Azul voltou ao assunto duas vezes. Numa delas, para falar de um insuspeitado inconveniente do telefone automático, ferramenta à disposição de esposas para controlar os passos do marido. “O pobre homem não pode mais distrair-se e, em vez de ir para o trabalho cotidiano, ficar vendo as mulheres que passam, nesse mundo efêmero, pelas calçadas da Avenida”, reclamou o cronista - e propôs que se incluísse no regulamento da companhia um artigo determinando que o telefone só poderia ser utilizado para “fins úteis”, entre os quais por certo não figurava “o controle dos maridos”.

Barba Azul dedicou crônica também à novidade, instantaneamente tornada praga, dos trotes telefônicos, molecagem inviável no reinado das telefonistas. Uma gente mal-educada, denunciou, estava ligando “para a residência de cavalheiros respeitáveis, na ausência destes, para comunicar às suas respectivas esposas certos detalhes da vida dos mesmos”. Tem cabimento? “Proponho que se deixe de achar graça nos trotes telefônicos”, arrematou o cronista - logo ele, Carlos Drummond de Andrade, que, como se sabe, com todo aquele ar sisudo, iria pela vida afora, idade madura adentro, disputar com outro moleque, o amigo Fernando Sabino, o título de campeão na arte de passar trotes.

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