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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

Um conto de Natal

Como em um soluço repentino, o presidente viu ao lado de sua cama aquilo que parecia o espectro de um homem. “Queiroz, Queiroz, é você?”, perguntou

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Por Gilberto Amendola
Atualização:

Para começar a história, mais de 180 mil pessoas estavam mortas. Não havia a menor dúvida quanto a isso. Os atestados estavam assinados, os familiares avisados e a tristeza era como um chantilly mofado escorrendo pelas bordas do sol. Em um país de faz de conta, incrustado feito mágoa no coração de um continente pirata, existia um presidente negacionista, armamentista e inculto.

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Na véspera de Natal, o presidente estava especialmente taciturno. Depois de uma ceia solitária, ele decidiu apagar as luzes do palácio e ir se deitar. No dia seguinte, iria se dirigir à nação para afirmar, mais uma vez, que a pandemia da covid já estava no finzinho e que ninguém deveria deixar se amedrontar por uma gripezinha.

Antes de ser abraçado pelo sono, o presidente deu uma breve espiada nas ilustrações do seu livro de cabeceira, A Verdade Inventada (escrito pelo coronel e torturador Ignorante Lustra). Em poucos minutos de não-leitura, os olhos ficaram pesados, como se estivessem sendo invadidos por grãos de areia.

Como em um soluço repentino, o presidente viu ao lado de sua cama aquilo que parecia o espectro de um homem. “Queiroz, Queiroz, é você?”, perguntou. Sem respostas, ele buscou a arma que sempre guardava embaixo do seu travesseiro – mas ela não estava lá.  Quem estava ao lado da cama do presidente era o espírito dos natais passados. E foi ele quem levou o homem mais poderoso daquele país de faz de conta para uma viagem no tempo, para uma época em que o menino-futuro-presidente ainda amava o Natal.

No passado, ele pôde rever a alegria no próprio rosto ao torcer o pescoço de um peru para a ceia da família. Pôde rever a magia de ganhar sua primeira arminha de plástico e de puxar a barba de um Papai Noel até que o rosto do bom velhinho sangrasse.  Mas, em um estalo, viu-se de novo em seu quarto. Achou que tinha sido abençoado por um sonho bom, mas logo sentiu a presença de outra pessoa ao seu lado. “Queiroz, Queiroz, é você?”, perguntou. Sem respostas, ele buscou a arma que sempre guardava embaixo do seu travesseiro – mas ela não estava lá. 

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Quem estava ao lado da cama do presidente era o espírito do Natal do presente. E foi ele quem levou o homem mais poderoso daquele país de faz de conta para uma viagem astral para fora de sua própria bolha de lambe-botas e Zé Louquinhos. 

No presente, ele pôde ver pessoas sem máscara, aglomerações, hospitais sem leitos de UTI. Ele viu outros povos se vacinando – enquanto em seu país de mentirinha não havia a mais remota hipótese de uma picadinha no braço. Ele também viu valas sendo abertas, velórios e enterros. O presidente espantou-se ao se reconhecer como um dos coveiros. O principal deles, o chefe dos coveiros.  Mas, em um estalo, viu-se de novo em seu quarto. Achou que tinha sido tomado por um pesadelo, mas logo sentiu a presença de outra pessoa ao seu lado. “Queiroz, Queiroz, é você?”, perguntou. Sem respostas, ele buscou a arma que sempre guardava embaixo do seu travesseiro – mas ela não estava lá.

Quem estava ao lado da cama do presidente era o espírito dos natais futuros. E foi ele quem levou o homem mais poderoso daquele país de faz de conta para uma viagem inimaginável para o ano de 2022.  No futuro, ele viu um país arrasado e de economia quebrada. Ele viu famílias chorando e pressentiu um exército de pessoas desempregadas ou mortas. O presidente se viu sozinho, abandonado em um lugar ermo e escuro. Por mais que gritasse, ninguém respondia. Apenas o seu próprio eco parecia ironizar repetindo um “tá ok, tá ok, tá ok”. 

Desesperado, ele tentou se centrar. Mas o centrão também não estava lá. Chamou pelos filhos e pelos milicos. Ninguém veio em sua ajuda. Sentou-se ao lado de um totem, uma gigante urna eletrônica, e chorou. O chantilly mofado escorria do céu quando ele despertou.

Acordado, o presidente levantou-se, tomou banho, colocou sua roupa de festa e foi fazer um pronunciamento à nação. Neste dia, ele teve a chance de dizer coisas que, talvez, pudessem mudar o seu próprio destino e o de uma nação. Se ele aproveitou a chance que teve? Não sei. Este é só mais um conto de Natal. ] É REPÓRTER DO ‘ESTADÃO’ E OBSERVADOR DA VIDA URBANA

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