Um candidato a intelectual brasileiro do século 20

Sérgio Buarque de Holanda (1902-82) é candidato forte a intelectual brasileiro do século 20. Como historiador, ensaísta e crítico literário, deixou uma obra que combina rigor e criatividade

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Por Agencia Estado
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Sérgio Buarque de Holanda (1902-82) é candidato forte a intelectual brasileiro do século 20. Como historiador, ensaísta e crítico literário, deixou uma obra que se destaca pela combinação de rigor e criatividade, capaz de unir a seriedade da pesquisa, a ousadia da interpretação e a consistência da análise. Ao contrário de Gilberto Freyre, não ultrapassou os limites da avaliação até chegar ao território movediço da ideologia. Freyre terminaria fazendo o elogio do sistema oligárquico, por sua natureza afetiva, a qual seria vocacionalmente democrática - e as deficiências da democracia brasileira persistem aí hoje. Sérgio Buarque não confundia desejo e realidade, o que não significa que não tenha sido politicamente ativo, como na fundação do PT. Mas seus livros identificaram os contornos históricos da organização social brasileira com uma argúcia que até agora não foi igualada. O paralelo plausível de seu trabalho intelectual é o de Octavio Paz, o grande ensaísta mexicano, autor de livros seminais sobre seu país e a América Latina como Labirinto da Solidão e O Ogro Filantrópico. Sérgio Buarque tem em comum com ele também a crítica literária. Reunidas nos dois volumes de O Espírito e a Letra, as resenhas do intelectual brasileiro mostram o mesmo interesse pela novidade duradoura e pelo diálogo com a tradição. Mas a maior semelhança está na capacidade de ambos de interpretar seus países, suas origens culturais, com uma prosa que recorre a metáforas eruditas e vivacidade narrativa, que seduz o leitor pela argumentação e não pelo sentimento. Homem cordial - É claro que a historiografia de Sérgio Buarque pode ser acusada de um mal ou outro, como o "culturalismo", como sua definição do que seria uma espécie de essência do homem brasileiro, um traço de comportamento que o passar do tempo jamais transformaria. Mas é difícil não analisar a sociedade brasileira sem partir de seu conceito de "homem cordial", que tantos e tantos fatos atuais reforçam. O "cordial" não quer dizer apenas hospitaleiro, caloroso, afetuoso, simpático, alegre, informal, descontraído, para lembrar os adjetivos normalmente empregados por articulistas e autores - não sem parcela de justiça - para descrever o povo brasileiro. Quer dizer, antes, que é um homem que se comporta segundo os ditames do coração, mais do que da razão, e se deixa levar demais pelos sentimentos, sobrepondo os laços afetivos a tudo. O nepotismo vigente nos meios políticos e mesmo fora deles é emblema fácil. A observação central de Raízes do Brasil (1936) é que a formação histórica brasileira, no processo de colonização lusitana, contra-reformista, criou uma estrutura social em que um ingrediente civilizatório fundamental em outros países não teve o mesmo teor: "a ideologia impessoal do liberalismo". Sérgio Buarque obviamente não se refere a uma doutrina econômica (mesmo porque, ao contrário do que se pensa até hoje no Brasil, são algumas correntes liberais, e não todas, que pregam a idéia do Estado Mínimo), mas àquele espírito que Max Weber descreveu, adequado ao capitalismo moderno, que trabalha com premissas não-subjetivas, contratuais, e está acima das vontades individuais. A fraqueza das instituições no capitalismo latino-americano, a começar pela da liberdade de expressão, continua a comprová-lo; e a separação entre público e privado é diariamente desmentida nos jornais que noticiam a apropriação quase sempre corrupta das verbas oficiais pelos interesses particulares. Brasil maravilha - Mas também é um equívoco deduzir que Sérgio Buarque veja nessas raízes antiliberais uma espécie de condenação, de karma insuperável pelo avanço histórico, à maneira do "isto aqui não tem jeito" que é tão comum ouvir nas esquinas brasileiras. E o importante para isso é, em parte, a diferenciação que estabelece entre a formação lusitana e a hispânica. A diferenciação aparece num dos mais belos capítulos de Raízes, com o título de sabor octaviopaziano O Semeador e o Ladrilhador, e é expandida brilhantemente em Visão do Paraíso (1959), livro em que contesta a noção da colonização ibérica como homogênea e linear. Na América colonizada pelos espanhóis, houve um esforço ordenado de ocupação do interior, de fundação de uma Nova Espanha; na colonizada pelos portugueses, o cultivo e o comércio litorâneos deram a tônica. Isso soa ruim, mas tem um aspecto bom: enquanto na América hispânica predominou mais a visão "edenizadora", uma expectativa de criação de um paraíso terreno, na lusitana as imagens fantasiosas deram lugar para uma atitude mais pragmática, realista. Na verdade, não faltaram visões de maravilhamento sobre o Brasil, que até hoje se considera eleito pela natureza, mas o padrão social realmente difere do de seus vizinhos. Sérgio Buarque também é pioneiro quando observa que o culto do improviso e do afeto - que se vê na torcida pelo futebol, por exemplo, em sua expressão mais reducionista - anda de mãos dadas com as idéias mais dogmáticas, com as crenças mais polarizantes, a exemplo do positivismo. É por isso que o sistema jurídico brasileiro, digamos, é repleto de leis que tratam de tudo e catalogam tudo, rigidamente, ao mesmo tempo que a sociedade é marcada por gestos personalistas e idéias românticas, pela procura de meios de "driblar" essa mesma lei. Esse traço que se torna até redentor em Freyre, não deixa de apontar caminhos para a transformação social do Brasil: a informalidade também é um meio de atenuar a hierarquia asfixiante, e por isso a mobilidade social brasileira é consideravelmente maior do que a de seus vizinhos hispânicos, assim como seus impulsos autoritários são menos fervorosos. Especulações - Para os parâmetros atuais, o ensaísmo de Sérgio Buarque, ainda que calcado em pesquisa e erudição sólidas ainda contém alto grau de especulação, e Evaldo Cabral de Mello notou como o historiador Sérgio Buarque está mais vivo do que o sociólogo. Mas as idéias sociológicas de Sérgio Buarque não podem ser postas de lado, porque também podem estimular bastante os intérpretes do presente que estejam dispostos a avaliar o quanto o Brasil conseguiu, pelo menos em parte razoável de seu território, ir superando - devagar e confusamente - o impacto da "exacerbação do afeto" em sua estrutura social, tentando delimitar melhor a esfera pública, estabelecer forças produtivas impessoais, elevar a representação política acima do nível familiar. Ainda que falte tanto a evoluir em termos de capitalismo democrático, o Brasil já não é em muitos aspectos comandado pela ideologia cordial da oligarquia e começa a entender que a afetuosidade não é necessariamente incompatível com a modernidade. Sem Sérgio Buarque, esse mínimo de clareza sobre o rumo do País - e sobre a complexidade desse rumo - não seria possível.

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